Após um hiato, retorno com um novo capítulo desse projeto onde um ente do folclore nacional é responsável pela riqueza de um a família. Espero que gostem e se possível comentem. Obrigado.
O famaliá de meu avô.
Santarém, Pará, 16 de abril
de 2007.
Nessa
semana, publicaremos a história do senhor José Raimundo Cravo Neto, natural do
estado do Maranhão e que atualmente vive em Sergipe. Ele nos enviou um relato
escrito por seu finado avô, acerca de um suposto pacto demoníaco perpetrado
pelo mesmo, que legou como herança à família, um ente fantástico do folclore
nacional. Como de costume, apresentaremos o texto enviado pelo leitor e logo em
seguida, um pequeno adendo explicativo, relativo ao ser descrito.
Aracajú, Sergipe, 28 de
março de 2007.
Olá amigo
C. C. de Carvalho, meu nome é José Raimundo Cravo Neto, tenho 65 anos, sou
professor e vivo atualmente em Aracajú. Tenho seguido sua coluna pela internet
e apesar de muitas vezes a achar cômica e pueril, confesso que a mesma me atrai
demasiadamente, pois desde menino que esse tipo de narrativa, de cunho fantástico,
faz parte de minha vida familiar.
Segundo meu
finado avô, figura muito querida por todos e que viveu até os noventa e seis
anos, a história da família Cravo é cheia de atos de temeridade ao tratar com o
dito “oculto” e inclusive a condição economicamente tranquila que gozamos se
deve a isso.
Quando
garoto, ele costumava me contar “causos” ocorridos em sua juventude e os mesmos
eram sempre recheados de catimbós e
assombrações. Eu ouvia extasiado, cada cena descrita e me encolhia todo de medo
sobre as cobertas ao relembrar das criaturas malignas que viviam no imaginário
interiorano de meu querido avô. Com o tempo, cresci e as conversas minguaram,
assim como os relatos fantásticos, pois meus interesses deixaram de lado o
irreal e me tornaram um jovem pragmático, fazendo com que me afastasse.
Agora
idoso, percebo o quanto fui um tolo. Penso que a idade é uma acusadora cruel,
já que não nos poupa de nenhum pecadilho perdido na memória.
Mas creio
que estou sendo vago e saudosista, deixando escapar o motivo real dessa nossa
conversa.
Recentemente,
ao visitar a antiga fazenda da família, localizada nos arredores da cidade de
Codó no Maranhão, acabei por topar com uma caixa escondida entre cacarecos jogados
em um depósito, onde estavam guardadas algumas páginas de uma espécie de
“testamento” e um objeto dos mais curiosos: um supostamente autêntico “famaliá”.
Apesar de
não acreditar mais em mitos, creio que o relato contido nas páginas amareladas
pelo tempo, seja mui interessante para os leitores de sua coluna semanal e por
isso decidi o enviar.
Espero que o mesmo seja publicado e dessa feita, a
memória de meu avô viva além de mim.
Atenciosamente,
José Raimundo Cravo Neto.
O relato encontrado na
fazenda:
Codó, 11 de dezembro de 1966.
Após tantos anos, finalmente vejo uma forma de escapar da sina que me
auto impus. Finalmente um fiapo de esperança surgiu para que eu me agarrasse e
assim não legue a criatura para meus meninos. Que ela permaneça presa sem nunca
mais ver a luz do Criador.
Que meus pecados sejam cobrados
somente de mim.
Deixo esse documento como um fio
condutor, para se algum de meus descendentes cometerem o erro de abrir a caixa,
com sua ajuda, tentarem remediar o mal que acabará por cair sobre suas vidas
como uma mortalha.
Essa criatura surgiu em minha vida
quando eu ainda era um rapazote da roça, iletrado, marginalizado e sem
perspectivas para o futuro. Devido à vida dura, mesmo miserável que levava,
acabei por enveredar na seara do crime. Roubei e matei a troco de ninharias,
fui durante um longo tempo, um dos cabras mais temidos da região, mas como
sempre ocorre, acabei preso e levado para uma colônia penal. Foi lá que conheci
Osório, catimbozeiro, que segundo ele mesmo, havia sido preso por ter lançado
um feitiço em uma família de políticos, causando a morte de várias pessoas. Era
um homem estranho, pois nunca saia da cela e que jamais vi comendo ou bebendo
algo.
Durante os anos em que fiquei preso, acabei por travar uma profunda
amizade pelo idoso. Quando perto de completar meu tempo de pena, Osório, para
agradecer por minha amizade, me propôs ensinar um catimbó para enriquecer e
assim angariar poder e respeito, mas para isso, eu teria que pagar um alto
tributo: teria que abdicar de minha alma imortal.
Impetuoso e tolo como eu era, não
fiz caso do tal “tributo” e apenas instei como deveria proceder. Foi o início
de minha futura fortuna e maldição.
Assim que fui liberto, segui para a
casa de minha família e como determinado pelos ditames ensinados por Osório,
esperei até a chegada da quaresma, quando coloquei em prática o catimbó
aprendido.
Assim que a noite desceu, fui até
uma encruzilhada em uma estradinha de chão e por três vezes chamei o nome
secreto do Diabo: Luzbel.
Tão logo o som de minha voz se perdeu entre a
densa mata que margeava a encruzilhada, uma silhueta surgiu das sombras e em
passos lerdos foi até o centro da intercessão para depositar algo no solo frio
e desaparecer. Apesar de ser um cabra valente, tremi como um covarde durante um
bom tempo. Quando a tremedeira passou, me dirigi até o ponto onde a figura
sinistra havia largado algo no chão e lá, encontrei um diminuto ovo. Um ovo de
casca preta como piche e de um peso desproporcional para seu tamanho.
Como exigia a formula mágica do
velho catimbozeiro, coloquei o ovo debaixo do sovaco esquerdo e desembestei
para casa. Durante todo o caminho, ouvi o que pareciam ser vozes distantes,
rindo e amaldiçoando.
Tão logo pisei em casa, tranquei-me
no quarto e lá permaneci escondido, evitando sair, mesmo para me alimentar.
Meus pais de início pensaram que eu estivesse novamente em maus lençóis com a
lei e por isso, não fizeram caso do meu comportamento arredio. Foram, como
sempre, muito amáveis. No entanto, com o passar dos dias, minha condição física
se deteriorou demasiadamente, emagreci mais de dez quilos em pouco mais de duas
semanas e tal fato trouxe alarme.
Acabei sendo forçado a sair de casa
para tomar um pouco de sol e respirar ar fresco, mas ao pisar no terreiro,
novamente as estranhas vozes se fizeram ouvir e na distância, pude ver
silhuetas como a que se apresentou no meio da estrada. Esmagado pelo medo, voltei
a me trancar em meu quarto e lá fiquei por mais dez dias, até que finalmente o
ovo maldito eclodiu.
Na quadragésima noite após receber o
ovo, acordei sentindo uma dor lancinante na mão esquerda e quando a visão se
focou, fiquei estarrecido com o que vi. Presa a meu dedo indicador, uma pequena
criatura estava peluda, com galhas, patas semelhantes às de uma ave e mãos como
de um mico. Ela mordia e sugava com sofreguidão, o sangue que escorria de meu
corpo.
Levei alguns momentos até tomar
controle da situação, mas quando meu espanto se esvaiu, tratei de arrancá-la de
minha mão esquerda e a levar até a garrafa que havia preparado para lhe servir
de prisão. Usei um garrafão de vinho barato, desses de vidro verde fosco. Sobre
o vidro, usando uma ferramenta própria para o fim, desenhei símbolos que havia
aprendido com Osório, segundo ele, eram chaves mágicas cujo poder forçavam o
famaliá a ser servil durante seu tempo de cativeiro. Foi trabalhoso forçar a
criaturinha, que devia medir na época um pouco mais de dez centímetros, gargalo
adentro. Ela guinchava e mordia com raiva incontida, mas no fim, coloquei a
rolha e cramulhãozinho ficou a arranhar inutilmente o vidro.
Após essa noite, as coisas começaram
a tomar um rumo venturoso. Assim como perdi peso de forma espantosa, retomei
meu vigor. E o medo que sentia morreu por completo ao me aventurar fora de casa
e não ver ou ouvir mais nada de sobrenatural.
Com o passar das semanas, me
aventurei na vila mais próxima e tão logo cheguei ao lugar, encontrei dinheiro
na rua. Uma quantia pequena, mas graças a ela pude jogar no bicho e ganhar uma
bolada. Com o dinheiro ganho, comprei algumas cabras para presentear meu pai e
para nossa alegria, uma doença severa caiu sobre todas as vacas e demais
animais leiteiros da região, matando rapidamente todos os rebanhos, menos o
nosso e dessa forma, ganhamos muito dinheiro.
Os meses se passaram e a cada dia eu
enriquecia mais. De forma milagrosa, as condições para que as posses de minha
família aumentassem, se multiplicavam. Tudo devido ao poder do famaliá preso no
garrafão de vinho.
Assim que a condição financeira
permitiu, meu pai contratou um professor para me educar e após minha
alfabetização, ingressei em um ótimo colégio e segui vida acadêmica até
formar-me como bacharel em direito.
Agora, já idoso, dono de uma fortuna
e pai de dois meninos, vejo que todo o dinheiro e poder que juntei são
malditos. Recentemente o diabrete passou a se comunicar comigo. Com sua voz
aguda, como a de uma criança histérica, ri de alegria, pois o fim dos meus dias
se aproxima e meu ocaso será o de toda a minha descendência.
Temendo as ameaças do famaliá,
contratei os serviços de estudiosos sobre o oculto e acabei por conseguir
descobrir uma forma de deter o mal que espreita minha casa, um mal que eu mesmo
conclamei.
Usando dos conhecimentos de um
rabino, mandei construir uma caixa especial, cujo poder anula a força da criatura
na garrafa, detendo sua sanha.
Essa é toda a verdade, tudo o que
ocorreu até a data de hoje. Agora, ciente da situação, siga as instruções que
lhe deixo.
No dia que a caixa for aberta, você,
meu descendente, deve agir da seguinte forma: leve o famaliá... (Esse trecho do
documento se deteriorou graças à ação de fungos, tornando impossível a leitura)
...só assim terás chance de escapar do mal.
Que Deus tenha misericórdia de minha
alma e proteja minha família.
José
Raimundo Cravo.
O famaliá:
O famaliá,
cramulhão, diabrete da garrafa, entre outra infinidade de nomes, é um ente do
folclore nacional cuja presença é marcante na literatura e ideário popular.
Oriundo da mítica da região nordeste e norte do Brasil foi imortalizado em
vários contos, romances, lendas e mesmo em folhetins televisivos.
Segundo a
tradição dita, nasce quando um indivíduo faz um pacto com o Diabo em troca de
riqueza e poder. Seria o equivalente nacional dos familiares descritos na
tradição cristã europeia. Segundo o Ars Goétia, muitos dos espíritos que podem
ser supostamente conjurados, fornecem familiares, seres que possuiriam a função
de auxiliar o feiticeiro em uma vasta gama de labores.
No folclore
nacional, para se conseguir um famaliá, o interessado, após seu encontro com o
Diabo em pessoa, deve procurar um ovo especial, que pode ser fornecido tanto
pelo ser demoníaco, quanto por um animal como uma galinha, lagartixa, cobra ou
galo. Quanto mais insólito ou perigoso o provedor do ovo mágico, mais poderoso
o diabrete. A cor do ovo também determinaria o poder do cramulhãozinho, sendo
que quanto mais escura sua casca, mais eficiente a criatura.
Após o
passo inicial de se conseguir o ovo, tarefa que deve ser feita durante a
Quaresma, o contratante do pacto deve levar ovo sob sua axila esquerda, em uma
encruzilhada durante a meia noite e ali permanecer durante toda a madrugada.
Assim que a manhã despontar no horizonte, deverá ir para casa e permanecer
trancado nela durante quarenta dias até que o ovo ecloda e o diabrete surja.
Logo após o
nascimento da criatura, seu dono deve a prender em uma garrafa previamente
preparada para tal fim, visando o total controle do famaliá e o uso de seus
poderes mágicos. O diabrete permanece dentro do recipiente/prisão durante toda
a vida de seu mestre e após a morte do mesmo, escapa e carrega sua alma para o
inferno.
Segundo a
Goétia, um familiar deve ser alimentado com uma gota de sangue a cada quinze
dias. O sangue deve ser do seu amo e caso não seja alimentado, lentamente
definhará até desaparecer.
Foto: A caixa escondida.
Na foto, vemos
uma caixa de madeira onde foram pirogravados alguns símbolos que parecem ter
significado religioso/mágico e o aviso descrito no relato do senhor Cravo. A
caixa parece ser sólida e possui reforços em metal que lhe legam a aparência de
um cofre rústico.
Foto: O famaliá ressecado dentro
da garrafa.
Na imagem se observa uma pequena figura, cujo aspecto vai
de encontro com o narrado nos documentos encontrados pelo senhor Cravo Neto, a
mesma está ressecada como uma múmia e deitada na posição fetal. Um brilho
sinistro emana do que seriam os orifícios oculares. Um efeito do flash da
câmera? Sem sombra de dúvida, um artesanato muito bem trabalhado.
Agradecemos
o senhor Cravo Neto pelo sua contribuição e como de costume, colocamos a cópia
do documento original enviado para nossa redação, à disposição dos leitores que
desejarem avaliar a veracidade do mesmo. Basta nos enviar o pedido via
internet.
C. C. de Carvalho – Jornalista