quarta-feira, 15 de outubro de 2014

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Após um hiato, retorno com um novo capítulo desse projeto onde um ente do folclore nacional é responsável pela riqueza de um a família. Espero que gostem e se possível comentem. Obrigado.



O famaliá de meu avô.

Santarém, Pará, 16 de abril de 2007.

Nessa semana, publicaremos a história do senhor José Raimundo Cravo Neto, natural do estado do Maranhão e que atualmente vive em Sergipe. Ele nos enviou um relato escrito por seu finado avô, acerca de um suposto pacto demoníaco perpetrado pelo mesmo, que legou como herança à família, um ente fantástico do folclore nacional. Como de costume, apresentaremos o texto enviado pelo leitor e logo em seguida, um pequeno adendo explicativo, relativo ao ser descrito.

Aracajú, Sergipe, 28 de março de 2007.

Olá amigo C. C. de Carvalho, meu nome é José Raimundo Cravo Neto, tenho 65 anos, sou professor e vivo atualmente em Aracajú. Tenho seguido sua coluna pela internet e apesar de muitas vezes a achar cômica e pueril, confesso que a mesma me atrai demasiadamente, pois desde menino que esse tipo de narrativa, de cunho fantástico, faz parte de minha vida familiar.

Segundo meu finado avô, figura muito querida por todos e que viveu até os noventa e seis anos, a história da família Cravo é cheia de atos de temeridade ao tratar com o dito “oculto” e inclusive a condição economicamente tranquila que gozamos se deve a isso.

Quando garoto, ele costumava me contar “causos” ocorridos em sua juventude e os mesmos eram sempre recheados de catimbós e assombrações. Eu ouvia extasiado, cada cena descrita e me encolhia todo de medo sobre as cobertas ao relembrar das criaturas malignas que viviam no imaginário interiorano de meu querido avô. Com o tempo, cresci e as conversas minguaram, assim como os relatos fantásticos, pois meus interesses deixaram de lado o irreal e me tornaram um jovem pragmático, fazendo com que me afastasse.

Agora idoso, percebo o quanto fui um tolo. Penso que a idade é uma acusadora cruel, já que não nos poupa de nenhum pecadilho perdido na memória.

Mas creio que estou sendo vago e saudosista, deixando escapar o motivo real dessa nossa conversa.

Recentemente, ao visitar a antiga fazenda da família, localizada nos arredores da cidade de Codó no Maranhão, acabei por topar com uma caixa escondida entre cacarecos jogados em um depósito, onde estavam guardadas algumas páginas de uma espécie de “testamento” e um objeto dos mais curiosos: um supostamente autêntico “famaliá”.

Apesar de não acreditar mais em mitos, creio que o relato contido nas páginas amareladas pelo tempo, seja mui interessante para os leitores de sua coluna semanal e por isso decidi o enviar.

            Espero que o mesmo seja publicado e dessa feita, a memória de meu avô viva além de mim.

            Atenciosamente,
                                   José Raimundo Cravo Neto.

O relato encontrado na fazenda:

Codó, 11 de dezembro de 1966.

            Após tantos anos, finalmente vejo uma forma de escapar da sina que me auto impus. Finalmente um fiapo de esperança surgiu para que eu me agarrasse e assim não legue a criatura para meus meninos. Que ela permaneça presa sem nunca mais ver a luz do Criador.

            Que meus pecados sejam cobrados somente de mim.

            Deixo esse documento como um fio condutor, para se algum de meus descendentes cometerem o erro de abrir a caixa, com sua ajuda, tentarem remediar o mal que acabará por cair sobre suas vidas como uma mortalha.

            Essa criatura surgiu em minha vida quando eu ainda era um rapazote da roça, iletrado, marginalizado e sem perspectivas para o futuro. Devido à vida dura, mesmo miserável que levava, acabei por enveredar na seara do crime. Roubei e matei a troco de ninharias, fui durante um longo tempo, um dos cabras mais temidos da região, mas como sempre ocorre, acabei preso e levado para uma colônia penal. Foi lá que conheci Osório, catimbozeiro, que segundo ele mesmo, havia sido preso por ter lançado um feitiço em uma família de políticos, causando a morte de várias pessoas. Era um homem estranho, pois nunca saia da cela e que jamais vi comendo ou bebendo algo.

Durante os anos em que fiquei preso, acabei por travar uma profunda amizade pelo idoso. Quando perto de completar meu tempo de pena, Osório, para agradecer por minha amizade, me propôs ensinar um catimbó para enriquecer e assim angariar poder e respeito, mas para isso, eu teria que pagar um alto tributo: teria que abdicar de minha alma imortal.

            Impetuoso e tolo como eu era, não fiz caso do tal “tributo” e apenas instei como deveria proceder. Foi o início de minha futura fortuna e maldição.

            Assim que fui liberto, segui para a casa de minha família e como determinado pelos ditames ensinados por Osório, esperei até a chegada da quaresma, quando coloquei em prática o catimbó aprendido.

            Assim que a noite desceu, fui até uma encruzilhada em uma estradinha de chão e por três vezes chamei o nome secreto do Diabo: Luzbel.

             Tão logo o som de minha voz se perdeu entre a densa mata que margeava a encruzilhada, uma silhueta surgiu das sombras e em passos lerdos foi até o centro da intercessão para depositar algo no solo frio e desaparecer. Apesar de ser um cabra valente, tremi como um covarde durante um bom tempo. Quando a tremedeira passou, me dirigi até o ponto onde a figura sinistra havia largado algo no chão e lá, encontrei um diminuto ovo. Um ovo de casca preta como piche e de um peso desproporcional para seu tamanho.

            Como exigia a formula mágica do velho catimbozeiro, coloquei o ovo debaixo do sovaco esquerdo e desembestei para casa. Durante todo o caminho, ouvi o que pareciam ser vozes distantes, rindo e amaldiçoando.

            Tão logo pisei em casa, tranquei-me no quarto e lá permaneci escondido, evitando sair, mesmo para me alimentar. Meus pais de início pensaram que eu estivesse novamente em maus lençóis com a lei e por isso, não fizeram caso do meu comportamento arredio. Foram, como sempre, muito amáveis. No entanto, com o passar dos dias, minha condição física se deteriorou demasiadamente, emagreci mais de dez quilos em pouco mais de duas semanas e tal fato trouxe alarme.

            Acabei sendo forçado a sair de casa para tomar um pouco de sol e respirar ar fresco, mas ao pisar no terreiro, novamente as estranhas vozes se fizeram ouvir e na distância, pude ver silhuetas como a que se apresentou no meio da estrada. Esmagado pelo medo, voltei a me trancar em meu quarto e lá fiquei por mais dez dias, até que finalmente o ovo maldito eclodiu.

            Na quadragésima noite após receber o ovo, acordei sentindo uma dor lancinante na mão esquerda e quando a visão se focou, fiquei estarrecido com o que vi. Presa a meu dedo indicador, uma pequena criatura estava peluda, com galhas, patas semelhantes às de uma ave e mãos como de um mico. Ela mordia e sugava com sofreguidão, o sangue que escorria de meu corpo.

            Levei alguns momentos até tomar controle da situação, mas quando meu espanto se esvaiu, tratei de arrancá-la de minha mão esquerda e a levar até a garrafa que havia preparado para lhe servir de prisão. Usei um garrafão de vinho barato, desses de vidro verde fosco. Sobre o vidro, usando uma ferramenta própria para o fim, desenhei símbolos que havia aprendido com Osório, segundo ele, eram chaves mágicas cujo poder forçavam o famaliá a ser servil durante seu tempo de cativeiro. Foi trabalhoso forçar a criaturinha, que devia medir na época um pouco mais de dez centímetros, gargalo adentro. Ela guinchava e mordia com raiva incontida, mas no fim, coloquei a rolha e cramulhãozinho ficou a arranhar inutilmente o vidro.

            Após essa noite, as coisas começaram a tomar um rumo venturoso. Assim como perdi peso de forma espantosa, retomei meu vigor. E o medo que sentia morreu por completo ao me aventurar fora de casa e não ver ou ouvir mais nada de sobrenatural.

            Com o passar das semanas, me aventurei na vila mais próxima e tão logo cheguei ao lugar, encontrei dinheiro na rua. Uma quantia pequena, mas graças a ela pude jogar no bicho e ganhar uma bolada. Com o dinheiro ganho, comprei algumas cabras para presentear meu pai e para nossa alegria, uma doença severa caiu sobre todas as vacas e demais animais leiteiros da região, matando rapidamente todos os rebanhos, menos o nosso e dessa forma, ganhamos muito dinheiro.

            Os meses se passaram e a cada dia eu enriquecia mais. De forma milagrosa, as condições para que as posses de minha família aumentassem, se multiplicavam. Tudo devido ao poder do famaliá preso no garrafão de vinho.

            Assim que a condição financeira permitiu, meu pai contratou um professor para me educar e após minha alfabetização, ingressei em um ótimo colégio e segui vida acadêmica até formar-me como bacharel em direito.

            Agora, já idoso, dono de uma fortuna e pai de dois meninos, vejo que todo o dinheiro e poder que juntei são malditos. Recentemente o diabrete passou a se comunicar comigo. Com sua voz aguda, como a de uma criança histérica, ri de alegria, pois o fim dos meus dias se aproxima e meu ocaso será o de toda a minha descendência.

            Temendo as ameaças do famaliá, contratei os serviços de estudiosos sobre o oculto e acabei por conseguir descobrir uma forma de deter o mal que espreita minha casa, um mal que eu mesmo conclamei.

            Usando dos conhecimentos de um rabino, mandei construir uma caixa especial, cujo poder anula a força da criatura na garrafa, detendo sua sanha.

            Essa é toda a verdade, tudo o que ocorreu até a data de hoje. Agora, ciente da situação, siga as instruções que lhe deixo.

            No dia que a caixa for aberta, você, meu descendente, deve agir da seguinte forma: leve o famaliá... (Esse trecho do documento se deteriorou graças à ação de fungos, tornando impossível a leitura) ...só assim terás chance de escapar do mal.

            Que Deus tenha misericórdia de minha alma e proteja minha família.

                                                                                                          José Raimundo Cravo.

O famaliá:

O famaliá, cramulhão, diabrete da garrafa, entre outra infinidade de nomes, é um ente do folclore nacional cuja presença é marcante na literatura e ideário popular. Oriundo da mítica da região nordeste e norte do Brasil foi imortalizado em vários contos, romances, lendas e mesmo em folhetins televisivos.

Segundo a tradição dita, nasce quando um indivíduo faz um pacto com o Diabo em troca de riqueza e poder. Seria o equivalente nacional dos familiares descritos na tradição cristã europeia. Segundo o Ars Goétia, muitos dos espíritos que podem ser supostamente conjurados, fornecem familiares, seres que possuiriam a função de auxiliar o feiticeiro em uma vasta gama de labores.

No folclore nacional, para se conseguir um famaliá, o interessado, após seu encontro com o Diabo em pessoa, deve procurar um ovo especial, que pode ser fornecido tanto pelo ser demoníaco, quanto por um animal como uma galinha, lagartixa, cobra ou galo. Quanto mais insólito ou perigoso o provedor do ovo mágico, mais poderoso o diabrete. A cor do ovo também determinaria o poder do cramulhãozinho, sendo que quanto mais escura sua casca, mais eficiente a criatura.

Após o passo inicial de se conseguir o ovo, tarefa que deve ser feita durante a Quaresma, o contratante do pacto deve levar ovo sob sua axila esquerda, em uma encruzilhada durante a meia noite e ali permanecer durante toda a madrugada. Assim que a manhã despontar no horizonte, deverá ir para casa e permanecer trancado nela durante quarenta dias até que o ovo ecloda e o diabrete surja.

Logo após o nascimento da criatura, seu dono deve a prender em uma garrafa previamente preparada para tal fim, visando o total controle do famaliá e o uso de seus poderes mágicos. O diabrete permanece dentro do recipiente/prisão durante toda a vida de seu mestre e após a morte do mesmo, escapa e carrega sua alma para o inferno.

Segundo a Goétia, um familiar deve ser alimentado com uma gota de sangue a cada quinze dias. O sangue deve ser do seu amo e caso não seja alimentado, lentamente definhará até desaparecer.

Foto: A caixa escondida.

Na foto, vemos uma caixa de madeira onde foram pirogravados alguns símbolos que parecem ter significado religioso/mágico e o aviso descrito no relato do senhor Cravo. A caixa parece ser sólida e possui reforços em metal que lhe legam a aparência de um cofre rústico.

Foto: O famaliá ressecado dentro da garrafa.

            Na imagem se observa uma pequena figura, cujo aspecto vai de encontro com o narrado nos documentos encontrados pelo senhor Cravo Neto, a mesma está ressecada como uma múmia e deitada na posição fetal. Um brilho sinistro emana do que seriam os orifícios oculares. Um efeito do flash da câmera? Sem sombra de dúvida, um artesanato muito bem trabalhado.

Agradecemos o senhor Cravo Neto pelo sua contribuição e como de costume, colocamos a cópia do documento original enviado para nossa redação, à disposição dos leitores que desejarem avaliar a veracidade do mesmo. Basta nos enviar o pedido via internet.

C. C. de Carvalho – Jornalista

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

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Após um bom tempo sem trabalhar nesse projeto, finalmente apresento um novo capítulo, onde o último personagem chave da trama é apresentado.

Espero que gostem e como sempre, peço que critiquem.

Obrigado!


Alguém amargo.

A sala de reuniões está cheia. Técnicos e cientistas se acotovelam no pouco espaço disposto, enquanto esperam o início da reunião programada às pressas. Eles aguardam a chegada dos membros da equipe, criada pela ONU, para atuar sobre a descoberta do Cometa Craig.

Todos discutem acerca das possibilidades que a estrela errante pode apresentar para a sobrevivência da espécie humana e as dificuldades em utilizá-la para tanto. O ambiente é preenchido por uma balbúrdia de vários sotaques, que usando da língua inglesa, vociferam pontos de vista quase sempre discordantes e de um cheiro odioso de suor, café e cigarros misturados.

Recostados a um canto da sala, dois homens conversam entre baforadas de cigarro. Um deles é alto, de meia idade, com cabelos longos e desalinhados. Veste-se com um terno, cujos melhores dias já passaram, que lhe dá um aspecto de descuido. O outro é ligeiramente mais baixo, ainda na casa dos vinte, com cabelos raspados em um corte militar. Ele enverga um uniforme perfeitamente alinhado a sua silhueta atlética.

O mais jovem parece contrariado.
-Odeio essas reuniões montadas às pressas. Sempre muito falatório e pouca ação, sem contar esses pomposos que se pensam os senhores da ciência. Nunca colocaram o rabo fora do planeta e pensam saber alguma merda.

Deixando escapar um sorriso, o homem de terno parece se divertir com o militar.
-Eles sabem Santiago, mas apenas na teoria. O que não é nenhum demérito, pois sem a teoria deles, os militares nunca teriam a chance de colocar o rabo no espaço.

Santiago olha contrariado para o homem que sorri ao seu lado.
-Você sempre tenta ser engraçado Demitri, pena nunca conseguir. Por que esses merdas ainda não chegaram? Cada minuto perdido falando, menos chances temos de buscar a merda do gelo.

Demitri dá de ombros. A frase de Santiago só faz seu sorriso aumentar.
-Por isso deixei o exército, os militares não tem senso de humor. Quanto à demora: Não faço idéia, mas sempre é assim, acho que dessa forma o alto escalão se sente mais importante.

O militar deixa cair a guimba de seu cigarro no chão e como se querendo a punir, pisa com violência.
-Bando de inúteis, é o que são. Pelo dito, a missão será uma cópia barata de um filme velho. Mandar várias equipes para o espaço interceptar o gelo e rebocá-lo até o planeta. Acha que vai dar certo?

O russo retira do bolso um maço de cigarros e oferece ao militar ranzinza.
-Não sei, mas pro Bruce Willys, deu certo.

Santiago, já muito irritado, cruza os braços sobre o peito, ignorando o maço estendido em sua direção.
-Não fode Demitri. Onde esses merdas se meteram que não chegam?

O homem de terno retira um cigarro do maço e o acende na guimba que ainda tem nos lábios.
-Sei lá. Mas sabendo que o Silva é o responsável pelo projeto, não deve demorar muito mais.

O jovem oficial faz uma careta, como se perguntando quem é a pessoa mencionada. Demitri, jogando o restolho do cigarro fumado e colocando o recém-aceso nos lábios, explica.
-Silva... O cara é um gênio em astro física, física quântica e química. Já foi indicado a dois Nobels e é considerado o Einstein da atualidade. Um camarada amargo e frio pra cacete, mais parece uma máquina. Já trabalhei com ele uma vez, é uma pessoa difícil de conviver.

Santiago estende a mão em um gesto pedindo por cigarros.
-Por que difícil?

O homem mais alto sorri enquanto puxa o maço do bolso.
-Silva é sobrevivente da Guerra da Água no Brasil. Ele é órfão de guerra e foi criado por religiosos da Inglaterra. O cara sofreu tanto durante a guerra e a criação religiosa recebida, que acabou virando um poço de amargura e ressentimento. Se não fosse pela grana oferecida e o espírito prático dele, nunca iria se meter nesse projeto. Odeia a raça humana, já o ouvi dizer isso várias vezes. Por ele, já deveríamos ter sido extintos. Chama a humanidade de vírus presunçoso.

O militar pega um cigarro e o acende, entre uma baforada deixa escapar seu desprezo.
-Deve ser um merda. Um verme insolente.

Demitri sorri.
-O pior é que não, Vegita. Ele apenas é muito amargo. Se fosse feito de café, precisaria de todo o açúcar sintético do mundo para ficar tragável, mas como profissional é impecável.

O homem de uniforme faz uma nova careta descontente.
-Que se foda. Já estou de saco cheio e...

Santiago é interrompido pela entrada da equipe da ONU, que ruidosamente chega ao já muito barulhento recinto. Ela é composta por vários membros, que rapidamente, ocupam os lugares da mesa reservada sobre um tablado. São mulheres e homens de várias idades e nacionalidades distintas, os mais destacados cientistas de suas áreas.
O último a entrar é um homem de altura média, cabelos crespos, pela morena e uma carranca mal humorada. Veste um terno novo, aparentemente muito caro.

Demitri dá uma cotovelada leve em seu amigo militar e afirma.
-Aquele lá é o Silva. Viu só? A cara dele é sempre assim, nunca o vi sorrindo.

Silva toma seu lugar na mesa principal e com sua voz áspera, dá início à reunião.
-Boa tarde senhores, sou o Doutor Ângelo Silva, responsável pelo projeto Another Chance. Gostaria de agradecer sua presença. Vamos direto ao ponto senhores, o fato é que a humanidade depende do que fizermos e nossas chances de sucesso são mínimas. Na verdade, creio que todo o projeto seja mera perda de tempo e recursos.

Os presentes começam a gritar em oposição às palavras do cientista. O homem vestindo um terno antigo sorri.
-Não falei? Ele odeia a humanidade.

Santiago apenas olha para Silva com raiva, enquanto Demitri sopra anéis de fumaça. A plateia grita mais alto a cada nova frase do responsável pelo projeto da ONU. Os ânimos se exaltam ao ponto da segurança ser chamada para controlar a situação.

Após algumas longas tragadas, enquanto observa o espetáculo, o russo deixa escapar.
-Estamos fodidos.


Ele e Santiago saem da sala, conversando sobre o fracasso que a missão será.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

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Novo capítulo desse projeto, onde mais um personagem, o penúltimo, é apresentado. Espero que gostem e novamente peço, comentem. Obrigado!


Falsa fé.

A música tema irrompe assim que as pesadas cortinas do palco se espaçam. Lentamente, deixam à mostra o rico e moderno púlpito, onde a banda religiosa, bem vestida, jovem e ensaiada ao máximo, retira acordes dos caríssimos instrumentos importados. A música é antiga, ainda do período pré-guerra, ela embala a gigantesca plateia com seu ritmo sertanejo americanizado, preparando-a para a longa gravação do programa religioso. A luz é diminuída e então o homem entra. Toda a congregação ergue-se e para saudar sua chegada e o ovaciona demoradamente. O homem sorri enquanto aguarda o fim da demonstração de apreço de seu rebanho. Ele é alto, de porte atlético, viril e sua postura emana força e liderança. Veste um terno, bem talhado, sob medida, cujo valor, poderia comprar um carro popular usado. Seus cabelos são cuidadosamente cortados para darem a ideia de austeridade. O rosto, vincado por algumas marcas de idade, ostenta um proeminente queixo quadrado que aumenta sua imagem de força e poder. Seu nariz adunco, semelhante a um bico de ave, enverga um luxuoso par de óculos de ouro e prata, de aros finos e elegantes, que confere um ar de sapiência e estudo aos olhos brilhantes de cor azul. Seu sorriso é perfeito, os dentes são simétricos, bem escovados e brilhantes, conferindo uma aura de bondade e paciência. É a imagem ideal da liderança.

Assim que a multidão volta a sentar-se, o homem vira em direção das câmeras e com sua voz, de um tom profundo e grave, dá início ao programa.
-Bem vindos amados. Eu sou o Apóstolo E. J. de Souza e esse é o Show Universal do Poder de Cristo.
Novamente a congregação ovaciona o apóstolo que sorri à espera do fim da vinheta de abertura, que vai sendo transmitida para todo o país e algumas partes do exterior. Enquanto aguarda, ele observa a multidão e se compraz com a lotação total do templo central de sua denominação. Ao fundo pode ver as pessoas se acotovelando por um lugar na entrada e isso só o deixa ainda mais satisfeito.
-Casa cheia. Hoje as ofertas serão gordas. – Pensa com seus botões.
A vinheta termina e assim que a pequena lâmpada vermelha, sob a câmera de número dois acende, o religioso dá inicio a seu sermão.
-Amados, mais uma vez tenho a alegria de estar aqui e os encontrar felizes. Felizes por estarem na casa do Senhor. Glória a Deus! Aleluia!
A multidão repete as palavras do homem, o aplaudindo de maneira automática.

O apóstolo passa então a caminhar pelo púlpito, seguido pelas câmeras e os olhares cheios de fé e admiração das pessoas. Por alguns segundos apenas sorri em silencio, em uma pausa dramática, preparando a congregação para um sermão cheio de lugares comuns, palavras de esperança e ameaça.
-Amados! O Senhor sabe de suas dores e aflições. Ele sabe e tem a solução para tudo. Tudo!
Mais uma pausa dramática é feita e o pastor observa as expressões de credulidade e acenos afirmativos do povo. Satisfeito com suas palavras dá continuidade ao sermão. Sua expressão e voz tornam-se mais sinistras e inquisidoras.
-Mas vocês tem feito o que é necessário, amados? Têm se entregado nas mãos do Senhor? Têm sido fiéis? Têm agido de forma condizente com a moral de um verdadeiro crente?
As pessoas ficam paralisadas, temendo responder de forma errônea as perguntas do palestrante.
-A resposta é não, amados. Não! Vocês não têm sido crentes verdadeiros! Não.
A expressão do homem novamente se suaviza e ele sorri para as pessoas perplexas.
-Não, vocês não têm sido certos ou agido da maneira certa. Por isso a maldição está sobre vocês! Aleluia!
O pastor olha para um rapaz que segura uma folha digital e o jovem levanta uma de suas mãos, mostrando três dedos, indicando que ainda restam trinta minutos antes do comercial. Com um sutil aceno de cabeça, o homem dá a entender que compreendeu a mensagem.
-Mas o Senhor é pleno de amor e perdão. E ele está pronto para perdoar suas falhas. Mas para isso, ele precisa de um sinal de fé. Um sinal verdadeiro de fé. E é por isso que eu estou aqui, para ajudar vocês a encontrar o perdão do Senhor. Aleluia!
Nova ovação percorre o templo moderno e vasto, meticulosamente planejado para causar sensações de paz, conforto e segurança. A imagem do apóstolo sorrindo é emoldurada nos modernos e gigantescos visores pendurados na nave central. A mesma imagem é vista em milhares de pequenos aparelhos domésticos em casas pobres ao redor do globo.

O homem ergue seu punho direito em um gesto teatral e fechando os olhos, continua sua atuação.
-Vocês sabem por que toda a África foi destruída?
As pessoas observam o pastor com os olhos cheios de um misto de reverência e medo servil.
-Por que eles eram malditos! Por que usavam da macumba! Da magia negra! Por que não seguiam o Senhor Jesus! E por isso o Senhor destruiu aquela terra maldita e assegurou que assim essa abominação toda fosse expurgada da terra! Aleluia!
O povo crédulo, composto por sua maioria por pessoas humildes de pouca escolaridade, ovaciona o homem por mais uma vez.
-E tenham certeza amados! Vocês e eu ainda estamos sob o poder da maldição, pois ela está no sangue! Nosso sangue! E para que o senhor tenha misericórdia, devemos provar nossa fé! E como vamos fazer isso? Ajudando na obra do Senhor!
As pessoas aplaudem o pastor com sorrisos cheios de esperança.
-Amados! Vivemos nos dias finais! Tudo está na Bíblia! As guerras, fome e morte dominam o mundo! E o tal cometa? Ele é o sinal da chegada do Inimigo! Glória a Deus! E quando ele chegar, todos os infiéis, os que não acreditam no Senhor! Serão queimados no fogo da danação! Aleluia!
A multidão fica em silêncio, o medo é óbvio em seus olhares.
-Mas amados, o Senhor nos deu uma oportunidade para provarmos a nossa fé e merecimento. Ele enviou uma palavra de esperança para mim e eu irei dividir essa palavra com vocês, os que querem ser crentes de verdade! Os que querem o maná do Senhor! Os que querem o perdão de Deus! Aleluia!
O povo, cheio de fé e esperança, aplaude o homem, que sorrindo, acena para a banda começar uma música de fundo. Uma marcha antiga, composta no estrangeiro, invade o ambiente.

No centro do púlpito, o apóstolo, em um novo gesto teatral aponta para a congregação.
-O senhor me disse em sonhos, que nós devemos construir uma nova arca. Uma arca para salvar o Seu povo! Mas para isso, amados, vocês tem que nos ajudar. Vocês tem que provar sua fé! E como vocês farão isso?
Novamente ele fica em silêncio por alguns minutos, encarando as pessoas, que cheias de medo e fervor, aguardam a resposta que supostamente salvará suas almas.
-Vocês provarão sua fé no Senhor, financiando esse projeto! Financiando o projeto do Senhor! O projeto Maná da Vida! Aleluia!
O rapaz que segura a folha digital gesticula, dizendo que é chegada a hora dos comerciais, o pastor dá uma piscadela como resposta.
-Amados! Agora nós daremos uma pausa na nossa pregação, pois a televisão exige que façamos três minutos de comerciais. Enquanto esperamos, a nossa irmã adoradora irá cantar um louvor para nós. Aleluia!
O homem se retira do centro do púlpito e uma jovem, de belos olhos verdes e com uma voz demasiada aguda, começa uma canção cheia de palavras de ordem e clichês. O pastor ao se aproximar do rapaz pergunta.
-Quem é essa garota Ezequiel?
O jovem, Ezequiel, sorri. Seu sorriso é cheio de significado.
-O nome dela é Allana Jessica. É a primeira vez que louva aqui no templo central. Quer conhecer ela pessoalmente?
O apóstolo sorri enquanto balança afirmativamente a cabeça.
-Quero sim. Boa bunda a dela. E os números?
O rapaz exibe a folha digital, nela várias estatísticas oscilam.
-Muito bons, batemos a novela e aquele seriado velho de humor. No exterior ainda estamos perdendo para as programações locais.
O apóstolo parece satisfeito.
-E as doações?
O rapaz toca a tela e novas estatísticas aparecem ao lado de várias imagens e vídeos de fieis ao redor do globo.
-Quebramos a meta de hoje e as campanhas de adesão nas mídias sócias pela internet são cada vez mais abrangentes. Um sucesso!
O homem dá algumas palmadas descontraídas nos ombros do jovem. A satisfação é muito óbvia em seu semblante.
-Ótimo Ezequiel. Continue o bom trabalho.
O pastor dá as costas ao rapaz, que fica sorrindo abobalhado com o cumprimento. Posiciona-se ao lado do palco, esperando que o intervalo termine. Seus olhos devassam as formas da cantora e ele pensa.
"Rabo gostoso esse dela, mas canta porra nenhuma essa piranha".
Assim que a canção termina, ele volta para o centro do púlpito e várias palavras de agradecimento são dirigidas a jovem enquanto ele perscruta a multidão. Ele sorri para si mesmo ao pensar no dinheiro e no sexo que conseguirá hoje.
Sorri da credulidade e ignorância da congregação.
Sorri de sua estupides e medo.
Sorri da falsa fé que vende.
Assim que a luz da câmera novamente acende, o pastor dá seguimento ao seu trabalho de vendedor da palavra divina.
Muito mais dinheiro precisa ser conquistado.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Posted by T. T. Albuquerque | File under : , , , ,
Novo capítulo desse projeto que apesar de pouco feedback, tem me ocupado a mente nos últimos tempos.
Dedico esse capítulo a amiga Maria Santino pelos comentários e dicas sempre tão gentis.
Espero que gostem e como via de regra peço, deixem um comentário. Obrigado!


Uma estátua no caminho.

O sol do meio dia com seus inclementes raios faz com que o velho asfalto se aqueça até que na distância, ele se pareça com água. O som monótono do vento curvando os matagais, fartos e altos, como vagas, é o único a quebrar o silencio sepulcral das ruínas da cidade. Um rapaz, sai ao sol para urinar sobre um velho bueiro, que mesmo antes da destruição da antiga capital do estado, já não cumpria sua missão de expelir as águas imundas da cidade até o mar, que tantos turistas um dia, pagaram fortunas para ver de janelas de hotéis que agora não passam de entulho e lembranças.

O rapaz é muito magro e alto, apesar de ser negra, sua pele é cinzenta, um efeito das drogas que consome diariamente. Seu cabelo, longo e enrolado como o de um rastafári, é tingido de loiro e confere a sua figura, uma aparência estranha devido à sua doentia magreza. Seus olhos são profundos e avermelhados, como se encravados na face, outro efeito de seu vício. A roupa que veste, uma camisa de um centenário time de futebol, tenta combinar-se com a bermuda de algum tecido sintético, cheio de padrões florais e um gasto par de chinelos brancos que deixam seus calcanhares tocarem o chão quente, são velhas, sujas e chamativas demais.
Enquanto urina, ele cantarola uma música que fala sobre violência e sexo. O rapaz parece perdido em pensamentos, mas na verdade, apenas está sob os efeitos da droga barata que o consome. Uma voz, o chama de dentro do buraco na parede do antigo prédio da prefeitura, que agora não passa de um lar para gatos e uns poucos mendigos sem juízo.
-Juba! Volta aqui seu filho da puta! Se algum dos “homi” te vê, nós tá morto! Volta aqui vacilão!

Lentamente, Juba caminha de volta para dentro do esconderijo e lá ele se depara com o outro rapaz.
-Qual é mané? Precisava mijar. Tu é muito cheio de caô Gregório.
Gregório, um rapaz tão alto quanto seu companheiro, mas muito mais saudável em aparência, está sentado, observando um grande pedaço de papel à sua frente. Sua cabeça é raspada, seus olhos são pequenos, de um estranho brilho e veste-se com um uniforme militar antigo, do tipo usado durante a guerra pelas forças compulsórias de defesa. Ele ameaça Juba.
-Se algum dos “homi” vier, eu te mato antes deles. Seu otário vacilão!
O mais magro, senta-se em um canto e enquanto acende seu cachimbo, tenta apaziguar Gregório.
-Que é isso parceiro? Relaxa que não vai dar ruim não. Tá afim?
O jovem estende o cachimbo na direção de seu companheiro.
-Quero essa porra não. Crakudo do caralho! Chega mais, que tu tem que tá ciente da situação.

Juba atende a ordem e coloca-se ao lado oposto do papel. Ele fica olhando para as linhas, letras e números enquanto espera que Gregório fale sobre o serviço.
-Tá vendo esse ponto aqui? – Ele aponta com o indicador uma marca vermelha desenhada à caneta. – Esse é o ponto que nós tá e nós tem que ir pra cá. – O dedo viaja sobre o papel e se fixa sobre outro ponto vermelho.
Por instantes, o drogado observa o papel parecendo não prestar atenção à explicação.
-Tá doidão já porra?
Gregório sacode o companheiro, que fica sorrindo abobalhado.
-Tô quase xará. Mas tô te ouvindo, continua. Quem te deu essa porra de mapa?
Sacudindo a cabeça de forma negativa, o rapaz começa a dobrar o mapa enquanto ergue-se.
-Tu é foda. Foi meu avô, ele foi cabo durante a guerra e me ensinou. Esse uniforme também foi dele.

Juba deitando-se no chão de costas e ainda fumando, indaga.
-Por que nós tem que entrar na cidade velha xará? Num era mais fácil os cara do movimento mandá essa porra de encomenda de carro ou outra merda?
Guardando o mapa em um bolso e sentando-se próximo à entrada do esconderijo, Gregório deixa escapar um grunhido de insatisfação.
-Por que assim é menas perigoso de os “homi” acharem as paradas mané. Só sendo muito otário pra passar no meio da cidade velha, ainda mais de noite. Eles nunca imaginaram que iam fazê isso.
Quase que completamente dopado, o rapaz deitado, continua com suas perguntas.
-Por quê? Por causa dos mutante e dos canibal?
Gregório sorri.
-Não tem mutante e nem canibal. É por causa dos mendigos malucos e das químicas.
Juba vira o rosto na direção de seu companheiro.
-Que química mané?
A expressão de Gregório se transforma em uma máscara de puro desprezo.
-Porra mané, tu não sabe de porra nenhuma mesmo. Foi durante a guerra. Quando os gringo invadiu a cidade, eles usaram a merda de um monte de bombas com químicas. Elas mataram geral e envenenaram tudo. Até hoje, maluco que vive andando por lá, se fode.
O drogado vira o corpo na direção de seu companheiro.
-Conta mais aí. O que aconteceu pra essas merdas terem rolado?
Gregório sorri de forma presunçosa.
-Tu sabe de nada mané. Meu avô me contou a parada toda. Os gringos invadiram pelo norte e vieram descendo o Brasil. Eles queriam a água e meteram o pé na porta pra pegá. Eles chegaram aqui no Rio, metendo o terror. Bomba pra caralho e maluco descendo nas praia e matando geral.
O governo subiu o morro e pegou tudo que é maluco que pudesse segurar um bérro e mandou pra ação. Morreu maluco pra caralho mané. O Brasil começou a vencer os malucos e aí eles mataram geral com bomba química. Matou geral, em todo lugar que jogaram as bombas e a química ficou até hoje lá. Por isso que quando a guerra acabou, o governo cercou tudo e proibiu de entrar. Podia matar só de respirar o ar. Agora, se tu não ficar lá por muito tempo, fica de boa e não morre.

O rapaz vira o rosto em direção às ruinas, que dominam a paisagem fora do esconderijo.
-Meu avô ficou sequelado com essas merdas que jogaram, ele as vez, fica se tremendo e babando. É sinistro mané. Tu sabe que vai ser foda hoje de noite, né?
Ao olhar novamente para o interior da pequena caverna, percebe que o outro rapaz está completamente dominado pelo sono escapista da droga e já não o ouve.
Gregório balança a cabeça de forma desaprovadora e deixa escapar um pensamento.
-Por isso que essa merda tá cada vez pior, vagabundo não quer porra nenhuma com a hora do Brasil.
Ele fecha os olhos e depois de algum tempo, dorme profundamente.

***

Quando Gregório acorda, a escuridão já caiu sobre o mundo e apenas as distantes estrelas e a Lua, jogam alguma luz sobre a cidade desolada. O jovem busca, com os olhos, Juba na escuridão e o encontra graças à pequena brasa, que arde no cachimbo do garoto.
-Apaga essa merda mané. Tá querendo que vagabundo ache nós?
Em passos lentos e pesados, o rapaz aproxima-se e com a voz enrolada, saindo do esconderijo, diz.
-Num fode mané. Bora meter o pé, que a parada é sinistra.

Gregório segue o companheiro, assim que afivela sua mochila nas costas. Ele corre até o corpo raquítico, que cambaleia no meio da antiga avenida e o arrasta para as sombras das ruínas.
-Tá querendo morrer mané? Porra. Só me segue vacilão, que eu sei o caminho. Já fiz essa merda antes.
Juba apenas balança a cabeça afirmativamente. Sua expressão é de puro torpor.
-Relaxa. Nós tá na atividade viado. Me garanto.

Após passarem sobre alguns quarteirões calcinados, a dupla chega até a quilométrica grade, que sela a área contaminada, presa a ela, cartazes de aviso desbotam sob a força dos elementos e do tempo. Eles espremem-se, por entre um buraco na estrutura e do outro lado, observam uma estranha construção. O drogado fica curioso.
-Que porra é essa mané?!
Uma mão tapa os lábios do rapaz e em sussurros, a resposta é dada.
-Fala baixo, filho da puta vacilão. Quer que alguém ache nós?
Juba afasta a mão com um safanão.
-Tá caralho. Mas diz pra mim. Que lugar é esse?
Gregório vira-se e continua a caminhada.
-Se chama Praça da Apoteose, antes da guerra, o desfile de carnaval era aqui. Por causa da química das bombas, eles mudaram lá pra Vila Isabel.

Os jovens continuam, e após passarem por escombros de uma grande estrutura, onde pichações em vermelho dizem, “Tanto balançou que caiu.”, chegam às ruinas da Central do Brasil e ao continuarem em frente, acabam por deparar-se com uma cratera que domina toda a rua. Ela parece perder-se de vista na escuridão. Por alguns minutos, ambos ficam em silêncio até que com a voz cheia de desapontamento, o jovem em trajes militares, o quebra com um xingamento.
-Fudeu. A porra do metrô ruiu. Vamo ter que dar a volta. Fudeu.
O rapaz magrelo, com seus olhos macilentos, vasculha a área e após um tempo, aponta para um gradil derretido, que dá acesso a uma floresta de árvores retorcidas e matagais de estranha coloração amarelada.
-Olha ali mané. Nós pode ir por ali não?
Gregório balança a cabeça negativamente.
-Pelo Campo da Morte? Tá maluco mané? Ai tem uma galera de maluco. Mata nós se pega.
Sorrindo, Juba começa a caminhar na direção do buraco nas grades, que já viram grande parte da história passar.
-Bora porra. Se nós ficar no sapatinho pega nada. Bora.
Mesmo contrário à ideia, o outro jovem segue o adicto, pela abertura.

A vegetação da floresta é vasta e de aparência doentia. Troncos de árvores centenárias recobertas de parasitas e marcas de fogo dominam o lugar. O mato é alto e espinhoso, ele agarra-se às roupas da dupla que com esforço, atravessa o lugar, tentando fazer pouco barulho. Após uma touceira de espinheiros mais frondosa, eles acabam por chegar a um descampado, onde ao longe, uma luz fantasmagórica se vê.
Curioso, Juba faz uma pergunta.
-Que porra é aquela mané?
A expressão do outro garoto é de puro medo.
-É a estatua da morte xará. Porra maluco, bora vazar que aqui é sinistro.
O rapaz parece ignorar a presença de seu parceiro e segue em direção da luz.
-Bora lá ver.
Gregório o segura pelo ombro, tentando o demover da ideia, mas ele o afasta.
-Sai fora mané. Se tu quiser, fica aqui e me espera. Eu vou ver essa porra.
O jovem segue o drogado.
-Para com isso mané. Essa porra é onde colocam os osso dos malucos que eles comem.
Juba para de caminhar no mesmo instante e em um movimento brusco, agarra seu companheiro pelo pescoço.
-Que papo errado é esse mané? Tu falou que não tinha esse papo de canibal.
Com um empurrão, Gregório o afasta.
-Eu menti mané. Tu não ia vir se eu dissesse que era verdade e eu preciso de tu pra trazer as parada na volta.
Juba o encara com os olhos cheios de ódio e então segue seu caminho até a estátua.
-E tu acha que eu sou cagão? Vai se fuder. Eu vou ver essa merda de perto.
O jovem fardado segue até a linha das árvores mais próximas e permanece ali, enquanto o outro continua em direção da figura de rocha.

Apesar do medo que sente, Juba continua sua caminhada ao estranho monumento, com passos largos, por vezes trôpegos por consequência das drogas, e decididos.
Ao chegar, depara-se com uma espantosa figura esculpida em rocha branca, de um homem coberto com um manto, ao seu redor, várias velas queimam e ossos de animais e seres humanos empilhados, exalam um odioso miasma de podridão. A face da obra foi vandalizada e transformada em um arremedo de caveira e na legenda em sua base, talhada de forma rústica a letra “f” sobrepõe-se a original. Com seu parco conhecimento, o jovem, após um profundo esforço, deixa escapar.
-O in... ferno. O inferno.
Concentrado, Juba não percebe que alguém, passa ao seu lado. Ele só toma nota que há algo ocorrendo, quando ouve a voz estridente que lhe ordena.
-Corre viado! Eles acharam nós!
O viciado leva um susto e só então entende a situação. Várias pessoas aproximam-se vindo das sombras das árvores e em sua frente, Gregório foge em desesperada carreira. Ele segue o exemplo e após poucos segundos, o alcança.
A dupla corre às cegas por um longo percurso e assim que o barulho da turba perseguidora desaparece, o mais magro dos dois decide parar e recuperar o folego.
-Para mané, preciso descansar ou caio duro.
Gregório parece não ouvir e continua a correr. Só quando seu pulmão começa a arder, que o rapaz para e ao olhar ao seu redor, não encontra o companheiro.
Usando de suas últimas forças, ele corre pelo caminho pelo qual veio e alguns metros depois, os gritos rompem o silêncio.
Juba urra implorando por ajuda, sua voz é cheia de desespero e horror. O rapaz grita como um porco sendo abatido.
Gregório pensa em continuar e ir ajudar o pobre rapaz, mas seu medo e instinto de preservação falam mais alto e ele segue seu caminho rumo ao ponto de entrega.
-Eu te avisei mané. Que se foda.

Os gritos ecoam pelas ruínas do centro do Rio por alguns minutos e então após um gorgolejar sinistro, o silêncio novamente domina tudo.