Novo capítulo desse projeto, onde mais um personagem, o penúltimo, é apresentado. Espero que gostem e novamente peço, comentem. Obrigado!
Falsa fé.
A música tema
irrompe assim que as pesadas cortinas do palco se espaçam. Lentamente, deixam à
mostra o rico e moderno púlpito, onde a banda religiosa, bem vestida, jovem e
ensaiada ao máximo, retira acordes dos caríssimos instrumentos importados. A
música é antiga, ainda do período pré-guerra, ela embala a gigantesca plateia
com seu ritmo sertanejo americanizado, preparando-a para a longa gravação do
programa religioso. A luz é diminuída e então o homem entra. Toda a congregação
ergue-se e para saudar sua chegada e o ovaciona demoradamente. O homem sorri
enquanto aguarda o fim da demonstração de apreço de seu rebanho. Ele é alto, de
porte atlético, viril e sua postura emana força e liderança. Veste um terno, bem
talhado, sob medida, cujo valor, poderia comprar um carro popular usado. Seus
cabelos são cuidadosamente cortados para darem a ideia de austeridade. O rosto,
vincado por algumas marcas de idade, ostenta um proeminente queixo quadrado que
aumenta sua imagem de força e poder. Seu nariz adunco, semelhante a um bico de
ave, enverga um luxuoso par de óculos de ouro e prata, de aros finos e elegantes,
que confere um ar de sapiência e estudo aos olhos brilhantes de cor azul. Seu
sorriso é perfeito, os dentes são simétricos, bem escovados e brilhantes,
conferindo uma aura de bondade e paciência. É a imagem ideal da liderança.
Assim que a
multidão volta a sentar-se, o homem vira em direção das câmeras e com sua voz,
de um tom profundo e grave, dá início ao programa.
-Bem vindos
amados. Eu sou o Apóstolo E. J. de Souza e esse é o Show Universal do Poder de
Cristo.
Novamente a
congregação ovaciona o apóstolo que sorri à espera do fim da vinheta de
abertura, que vai sendo transmitida para todo o país e algumas partes do exterior.
Enquanto aguarda, ele observa a multidão e se compraz com a lotação total do
templo central de sua denominação. Ao fundo pode ver as pessoas se acotovelando
por um lugar na entrada e isso só o deixa ainda mais satisfeito.
-Casa cheia. Hoje
as ofertas serão gordas. – Pensa com seus botões.
A vinheta termina
e assim que a pequena lâmpada vermelha, sob a câmera de número dois acende, o
religioso dá inicio a seu sermão.
-Amados, mais uma
vez tenho a alegria de estar aqui e os encontrar felizes. Felizes por estarem
na casa do Senhor. Glória a Deus! Aleluia!
A multidão repete
as palavras do homem, o aplaudindo de maneira automática.
O apóstolo passa
então a caminhar pelo púlpito, seguido pelas câmeras e os olhares cheios de fé
e admiração das pessoas. Por alguns segundos apenas sorri em silencio, em uma
pausa dramática, preparando a congregação para um sermão cheio de lugares
comuns, palavras de esperança e ameaça.
-Amados! O Senhor
sabe de suas dores e aflições. Ele sabe e tem a solução para tudo. Tudo!
Mais uma pausa
dramática é feita e o pastor observa as expressões de credulidade e acenos afirmativos
do povo. Satisfeito com suas palavras dá continuidade
ao sermão. Sua expressão e voz tornam-se mais sinistras e inquisidoras.
-Mas vocês tem
feito o que é necessário, amados? Têm se entregado nas mãos do Senhor? Têm sido
fiéis? Têm agido de forma condizente com a moral de um verdadeiro crente?
As pessoas ficam
paralisadas, temendo responder de forma errônea as perguntas do palestrante.
-A resposta é
não, amados. Não! Vocês não têm sido crentes verdadeiros! Não.
A expressão do
homem novamente se suaviza e ele sorri para as pessoas perplexas.
-Não, vocês não
têm sido certos ou agido da maneira certa. Por isso a maldição está sobre
vocês! Aleluia!
O pastor olha
para um rapaz que segura uma folha digital e o jovem levanta uma de suas mãos,
mostrando três dedos, indicando que ainda restam trinta minutos antes do
comercial. Com um sutil aceno de cabeça, o homem dá a entender que compreendeu
a mensagem.
-Mas o Senhor é
pleno de amor e perdão. E ele está pronto para perdoar suas falhas. Mas para
isso, ele precisa de um sinal de fé. Um sinal verdadeiro de fé. E é por isso
que eu estou aqui, para ajudar vocês a encontrar o perdão do Senhor. Aleluia!
Nova ovação
percorre o templo moderno e vasto, meticulosamente planejado para causar
sensações de paz, conforto e segurança. A imagem do apóstolo sorrindo é
emoldurada nos modernos e gigantescos visores pendurados na nave central. A
mesma imagem é vista em milhares de pequenos aparelhos domésticos em casas
pobres ao redor do globo.
O homem ergue seu
punho direito em um gesto teatral e fechando os olhos, continua sua atuação.
-Vocês sabem por
que toda a África foi destruída?
As pessoas
observam o pastor com os olhos cheios de um misto de reverência e medo servil.
-Por que eles
eram malditos! Por que usavam da macumba! Da magia negra! Por que não seguiam o
Senhor Jesus! E por isso o Senhor destruiu aquela terra maldita e assegurou que
assim essa abominação toda fosse expurgada da terra! Aleluia!
O povo crédulo,
composto por sua maioria por pessoas humildes de pouca escolaridade, ovaciona o
homem por mais uma vez.
-E tenham certeza
amados! Vocês e eu ainda estamos sob o poder da maldição, pois ela está no
sangue! Nosso sangue! E para que o senhor tenha misericórdia, devemos provar
nossa fé! E como vamos fazer isso? Ajudando na obra do Senhor!
As pessoas
aplaudem o pastor com sorrisos cheios de esperança.
-Amados! Vivemos
nos dias finais! Tudo está na Bíblia! As guerras, fome e morte dominam o mundo!
E o tal cometa? Ele é o sinal da chegada do Inimigo! Glória a Deus! E quando
ele chegar, todos os infiéis, os que não acreditam no Senhor! Serão queimados
no fogo da danação! Aleluia!
A multidão fica
em silêncio, o medo é óbvio em seus olhares.
-Mas amados, o
Senhor nos deu uma oportunidade para provarmos a nossa fé e merecimento. Ele
enviou uma palavra de esperança para mim e eu irei dividir essa palavra com
vocês, os que querem ser crentes de verdade! Os que querem o maná do Senhor! Os
que querem o perdão de Deus! Aleluia!
O povo, cheio de
fé e esperança, aplaude o homem, que sorrindo, acena para a banda começar uma
música de fundo. Uma marcha antiga, composta no estrangeiro, invade o ambiente.
No centro do
púlpito, o apóstolo, em um novo gesto teatral aponta para a congregação.
-O senhor me
disse em sonhos, que nós devemos construir uma nova arca. Uma arca para salvar
o Seu povo! Mas para isso, amados, vocês tem que nos ajudar. Vocês tem que
provar sua fé! E como vocês farão isso?
Novamente ele
fica em silêncio por alguns minutos, encarando as pessoas, que cheias de medo e
fervor, aguardam a resposta que supostamente salvará suas almas.
-Vocês provarão
sua fé no Senhor, financiando esse projeto! Financiando o projeto do Senhor! O
projeto Maná da Vida! Aleluia!
O rapaz que
segura a folha digital gesticula, dizendo que é chegada a hora dos comerciais,
o pastor dá uma piscadela como resposta.
-Amados! Agora
nós daremos uma pausa na nossa pregação, pois a televisão exige que façamos
três minutos de comerciais. Enquanto esperamos, a nossa irmã adoradora irá
cantar um louvor para nós. Aleluia!
O homem se retira
do centro do púlpito e uma jovem, de belos olhos verdes e com uma voz demasiada
aguda, começa uma canção cheia de palavras de ordem e clichês. O pastor ao se
aproximar do rapaz pergunta.
-Quem é essa
garota Ezequiel?
O jovem,
Ezequiel, sorri. Seu sorriso é cheio de significado.
-O nome dela é
Allana Jessica. É a primeira vez que louva aqui no templo central. Quer
conhecer ela pessoalmente?
O apóstolo sorri
enquanto balança afirmativamente a cabeça.
-Quero sim. Boa
bunda a dela. E os números?
O rapaz exibe a
folha digital, nela várias estatísticas oscilam.
-Muito bons,
batemos a novela e aquele seriado velho de humor. No exterior ainda estamos
perdendo para as programações locais.
O apóstolo parece
satisfeito.
-E as doações?
O rapaz toca a
tela e novas estatísticas aparecem ao lado de várias imagens e vídeos de fieis
ao redor do globo.
-Quebramos a meta
de hoje e as campanhas de adesão nas mídias sócias pela internet são cada vez
mais abrangentes. Um sucesso!
O homem dá
algumas palmadas descontraídas nos ombros do jovem. A satisfação é muito óbvia
em seu semblante.
-Ótimo Ezequiel.
Continue o bom trabalho.
O pastor dá as
costas ao rapaz, que fica sorrindo abobalhado com o cumprimento. Posiciona-se ao
lado do palco, esperando que o intervalo termine. Seus olhos devassam as formas
da cantora e ele pensa.
"Rabo gostoso
esse dela, mas canta porra nenhuma essa piranha".
Assim que a
canção termina, ele volta para o centro do púlpito e várias palavras de
agradecimento são dirigidas a jovem enquanto ele perscruta a multidão. Ele
sorri para si mesmo ao pensar no dinheiro e no sexo que conseguirá hoje.
Sorri da
credulidade e ignorância da congregação.
Sorri de sua
estupides e medo.
Sorri da falsa fé
que vende.
Assim que a luz
da câmera novamente acende, o pastor dá seguimento ao seu trabalho de vendedor
da palavra divina.
Muito mais
dinheiro precisa ser conquistado.
Cara! Eu adorei esse capítulo. Uma critica muito boa... Existem muitas pessoas assim neste nosso mundo e não precisamos correr no tempo para encontrá-las, pois elas estão em nosso meio mesmo. Usando o cristianismo para satisfazer as suas necessidades (ou melhor, vontades). A coerção, o medo é uma banalidade, contraditório... Como seria belo e mais justo se fizéssemos ou deixássemos de fazer algo baseado no respeito, em não prejudicar o próximo. Mas... Nossa sociedade enferma, padece mais e mais. Ótimo capítulo. No aguardo de mais. Abraços.
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