Novo capítulo desse projeto que apesar de pouco feedback, tem me ocupado a mente nos últimos tempos.
Dedico esse capítulo a amiga Maria Santino pelos comentários e dicas sempre tão gentis.
Espero que gostem e como via de regra peço, deixem um comentário. Obrigado!
Uma estátua
no caminho.
O sol do meio dia
com seus inclementes raios faz com que o velho asfalto se aqueça até que na
distância, ele se pareça com água. O som monótono do vento curvando os
matagais, fartos e altos, como vagas, é o único a quebrar o silencio sepulcral
das ruínas da cidade. Um rapaz, sai ao sol para urinar sobre um velho bueiro,
que mesmo antes da destruição da antiga capital do estado, já não cumpria sua
missão de expelir as águas imundas da cidade até o mar, que tantos turistas um
dia, pagaram fortunas para ver de janelas de hotéis que agora não passam de
entulho e lembranças.
O rapaz é muito
magro e alto, apesar de ser negra, sua pele é cinzenta, um efeito das drogas
que consome diariamente. Seu cabelo, longo e enrolado como o de um rastafári, é
tingido de loiro e confere a sua figura, uma aparência estranha devido à sua
doentia magreza. Seus olhos são profundos e avermelhados, como se encravados na
face, outro efeito de seu vício. A roupa que veste, uma camisa de um centenário
time de futebol, tenta combinar-se com a bermuda de algum tecido sintético,
cheio de padrões florais e um gasto par de chinelos brancos que deixam seus
calcanhares tocarem o chão quente, são velhas, sujas e chamativas demais.
Enquanto urina,
ele cantarola uma música que fala sobre violência e sexo. O rapaz parece
perdido em pensamentos, mas na verdade, apenas está sob os efeitos da droga
barata que o consome. Uma voz, o chama de dentro do buraco na parede do antigo
prédio da prefeitura, que agora não passa de um lar para gatos e uns poucos
mendigos sem juízo.
-Juba! Volta aqui
seu filho da puta! Se algum dos “homi” te vê, nós tá morto! Volta aqui vacilão!
Lentamente, Juba
caminha de volta para dentro do esconderijo e lá ele se depara com o outro
rapaz.
-Qual é mané?
Precisava mijar. Tu é muito cheio de caô Gregório.
Gregório, um
rapaz tão alto quanto seu companheiro, mas muito mais saudável em aparência,
está sentado, observando um grande pedaço de papel à sua frente. Sua cabeça é
raspada, seus olhos são pequenos, de um estranho brilho e veste-se com um
uniforme militar antigo, do tipo usado durante a guerra pelas forças
compulsórias de defesa. Ele ameaça Juba.
-Se algum dos
“homi” vier, eu te mato antes deles. Seu otário vacilão!
O mais magro,
senta-se em um canto e enquanto acende seu cachimbo, tenta apaziguar Gregório.
-Que é isso
parceiro? Relaxa que não vai dar ruim não. Tá afim?
O jovem estende o
cachimbo na direção de seu companheiro.
-Quero essa porra
não. Crakudo do caralho! Chega mais, que tu tem que tá ciente da situação.
Juba atende a
ordem e coloca-se ao lado oposto do papel. Ele fica olhando para as linhas, letras
e números enquanto espera que Gregório fale sobre o serviço.
-Tá vendo esse
ponto aqui? – Ele aponta com o indicador uma marca vermelha desenhada à caneta.
– Esse é o ponto que nós tá e nós tem que ir pra cá. – O dedo viaja sobre o
papel e se fixa sobre outro ponto vermelho.
Por instantes, o drogado
observa o papel parecendo não prestar atenção à explicação.
-Tá doidão já
porra?
Gregório sacode o
companheiro, que fica sorrindo abobalhado.
-Tô quase xará.
Mas tô te ouvindo, continua. Quem te deu essa porra de mapa?
Sacudindo a cabeça
de forma negativa, o rapaz começa a dobrar o mapa enquanto ergue-se.
-Tu é foda. Foi
meu avô, ele foi cabo durante a guerra e me ensinou. Esse uniforme também foi
dele.
Juba deitando-se
no chão de costas e ainda fumando, indaga.
-Por que nós tem
que entrar na cidade velha xará? Num era mais fácil os cara do movimento mandá
essa porra de encomenda de carro ou outra merda?
Guardando o mapa
em um bolso e sentando-se próximo à entrada do esconderijo, Gregório deixa
escapar um grunhido de insatisfação.
-Por que assim é
menas perigoso de os “homi” acharem as paradas mané. Só sendo muito otário pra
passar no meio da cidade velha, ainda mais de noite. Eles nunca imaginaram que
iam fazê isso.
Quase que
completamente dopado, o rapaz deitado, continua com suas perguntas.
-Por quê? Por
causa dos mutante e dos canibal?
Gregório sorri.
-Não tem mutante
e nem canibal. É por causa dos mendigos malucos e das químicas.
Juba vira o rosto
na direção de seu companheiro.
-Que química
mané?
A expressão de
Gregório se transforma em uma máscara de puro desprezo.
-Porra mané, tu
não sabe de porra nenhuma mesmo. Foi durante a guerra. Quando os gringo invadiu
a cidade, eles usaram a merda de um monte de bombas com químicas. Elas mataram
geral e envenenaram tudo. Até hoje, maluco que vive andando por lá, se fode.
O drogado vira o
corpo na direção de seu companheiro.
-Conta mais aí. O
que aconteceu pra essas merdas terem rolado?
Gregório sorri de
forma presunçosa.
-Tu sabe de nada
mané. Meu avô me contou a parada toda. Os gringos invadiram pelo norte e vieram
descendo o Brasil. Eles queriam a água e meteram o pé na porta pra pegá. Eles
chegaram aqui no Rio, metendo o terror. Bomba pra caralho e maluco descendo nas
praia e matando geral.
O governo subiu o
morro e pegou tudo que é maluco que pudesse segurar um bérro e mandou pra ação.
Morreu maluco pra caralho mané. O Brasil começou a vencer os malucos e aí eles
mataram geral com bomba química. Matou geral, em todo lugar que jogaram as
bombas e a química ficou até hoje lá. Por isso que quando a guerra acabou, o
governo cercou tudo e proibiu de entrar. Podia matar só de respirar o ar. Agora,
se tu não ficar lá por muito tempo, fica de boa e não morre.
O rapaz vira o
rosto em direção às ruinas, que dominam a paisagem fora do esconderijo.
-Meu avô ficou
sequelado com essas merdas que jogaram, ele as vez, fica se tremendo e babando.
É sinistro mané. Tu sabe que vai ser foda hoje de noite, né?
Ao olhar novamente
para o interior da pequena caverna, percebe que o outro rapaz está completamente
dominado pelo sono escapista da droga e já não o ouve.
Gregório balança
a cabeça de forma desaprovadora e deixa escapar um pensamento.
-Por isso que
essa merda tá cada vez pior, vagabundo não quer porra nenhuma com a hora do
Brasil.
Ele fecha os
olhos e depois de algum tempo, dorme profundamente.
***
Quando Gregório acorda,
a escuridão já caiu sobre o mundo e apenas as distantes estrelas e a Lua, jogam
alguma luz sobre a cidade desolada. O jovem busca, com os olhos, Juba na
escuridão e o encontra graças à pequena brasa, que arde no cachimbo do garoto.
-Apaga essa merda
mané. Tá querendo que vagabundo ache nós?
Em passos lentos
e pesados, o rapaz aproxima-se e com a voz enrolada, saindo do esconderijo,
diz.
-Num fode mané.
Bora meter o pé, que a parada é sinistra.
Gregório segue o
companheiro, assim que afivela sua mochila nas costas. Ele corre até o corpo raquítico,
que cambaleia no meio da antiga avenida e o arrasta para as sombras das ruínas.
-Tá querendo
morrer mané? Porra. Só me segue vacilão, que eu sei o caminho. Já fiz essa
merda antes.
Juba apenas
balança a cabeça afirmativamente. Sua expressão é de puro torpor.
-Relaxa. Nós tá
na atividade viado. Me garanto.
Após passarem
sobre alguns quarteirões calcinados, a dupla chega até a quilométrica grade,
que sela a área contaminada, presa a ela, cartazes de aviso desbotam sob a
força dos elementos e do tempo. Eles espremem-se, por entre um buraco na
estrutura e do outro lado, observam uma estranha construção. O drogado fica
curioso.
-Que porra é essa
mané?!
Uma mão tapa os
lábios do rapaz e em sussurros, a resposta é dada.
-Fala baixo,
filho da puta vacilão. Quer que alguém ache nós?
Juba afasta a mão
com um safanão.
-Tá caralho. Mas
diz pra mim. Que lugar é esse?
Gregório vira-se
e continua a caminhada.
-Se chama Praça
da Apoteose, antes da guerra, o desfile de carnaval era aqui. Por causa da
química das bombas, eles mudaram lá pra Vila Isabel.
Os jovens
continuam, e após passarem por escombros de uma grande estrutura, onde
pichações em vermelho dizem, “Tanto balançou que caiu.”, chegam às ruinas da
Central do Brasil e ao continuarem em frente, acabam por deparar-se com uma cratera
que domina toda a rua. Ela parece perder-se de vista na escuridão. Por alguns
minutos, ambos ficam em silêncio até que com a voz cheia de desapontamento, o
jovem em trajes militares, o quebra com um xingamento.
-Fudeu. A porra
do metrô ruiu. Vamo ter que dar a volta. Fudeu.
O rapaz magrelo,
com seus olhos macilentos, vasculha a área e após um tempo, aponta para um
gradil derretido, que dá acesso a uma floresta de árvores retorcidas e matagais
de estranha coloração amarelada.
-Olha ali mané.
Nós pode ir por ali não?
Gregório balança
a cabeça negativamente.
-Pelo Campo da
Morte? Tá maluco mané? Ai tem uma galera de maluco. Mata nós se pega.
Sorrindo, Juba
começa a caminhar na direção do buraco nas grades, que já viram grande parte da
história passar.
-Bora porra. Se
nós ficar no sapatinho pega nada. Bora.
Mesmo contrário à
ideia, o outro jovem segue o adicto, pela abertura.
A vegetação da
floresta é vasta e de aparência doentia. Troncos de árvores centenárias recobertas
de parasitas e marcas de fogo dominam o lugar. O mato é alto e espinhoso, ele
agarra-se às roupas da dupla que com esforço, atravessa o lugar, tentando fazer
pouco barulho. Após uma touceira de espinheiros mais frondosa, eles acabam por
chegar a um descampado, onde ao longe, uma luz fantasmagórica se vê.
Curioso, Juba faz
uma pergunta.
-Que porra é
aquela mané?
A expressão do outro
garoto é de puro medo.
-É a estatua da
morte xará. Porra maluco, bora vazar que aqui é sinistro.
O rapaz parece
ignorar a presença de seu parceiro e segue em direção da luz.
-Bora lá ver.
Gregório o segura
pelo ombro, tentando o demover da ideia, mas ele o afasta.
-Sai fora mané.
Se tu quiser, fica aqui e me espera. Eu vou ver essa porra.
O jovem segue o
drogado.
-Para com isso
mané. Essa porra é onde colocam os osso dos malucos que eles comem.
Juba para de
caminhar no mesmo instante e em um movimento brusco, agarra seu companheiro
pelo pescoço.
-Que papo errado
é esse mané? Tu falou que não tinha esse papo de canibal.
Com um empurrão,
Gregório o afasta.
-Eu menti mané.
Tu não ia vir se eu dissesse que era verdade e eu preciso de tu pra trazer as
parada na volta.
Juba o encara com
os olhos cheios de ódio e então segue seu caminho até a estátua.
-E tu acha que eu
sou cagão? Vai se fuder. Eu vou ver essa merda de perto.
O jovem fardado
segue até a linha das árvores mais próximas e permanece ali, enquanto o outro
continua em direção da figura de rocha.
Apesar do medo
que sente, Juba continua sua caminhada ao estranho monumento, com passos largos,
por vezes trôpegos por consequência das drogas, e decididos.
Ao chegar, depara-se
com uma espantosa figura esculpida em rocha branca, de um homem coberto com um
manto, ao seu redor, várias velas queimam e ossos de animais e seres humanos empilhados,
exalam um odioso miasma de podridão. A face da obra foi vandalizada e transformada
em um arremedo de caveira e na legenda em sua base, talhada de forma rústica a
letra “f” sobrepõe-se a original. Com seu parco conhecimento, o jovem, após um
profundo esforço, deixa escapar.
-O in... ferno. O
inferno.
Concentrado, Juba
não percebe que alguém, passa ao seu lado. Ele só toma nota que há algo
ocorrendo, quando ouve a voz estridente que lhe ordena.
-Corre viado!
Eles acharam nós!
O viciado leva um
susto e só então entende a situação. Várias pessoas aproximam-se vindo das
sombras das árvores e em sua frente, Gregório foge em desesperada carreira. Ele
segue o exemplo e após poucos segundos, o alcança.
A dupla corre às
cegas por um longo percurso e assim que o barulho da turba perseguidora
desaparece, o mais magro dos dois decide parar e recuperar o folego.
-Para mané,
preciso descansar ou caio duro.
Gregório parece não
ouvir e continua a correr. Só quando seu pulmão começa a arder, que o rapaz para
e ao olhar ao seu redor, não encontra o companheiro.
Usando de suas últimas
forças, ele corre pelo caminho pelo qual veio e alguns metros depois, os gritos
rompem o silêncio.
Juba urra
implorando por ajuda, sua voz é cheia de desespero e horror. O rapaz grita como
um porco sendo abatido.
Gregório pensa em
continuar e ir ajudar o pobre rapaz, mas seu medo e instinto de preservação
falam mais alto e ele segue seu caminho rumo ao ponto de entrega.
-Eu te avisei
mané. Que se foda.
Os gritos ecoam
pelas ruínas do centro do Rio por alguns minutos e então após um gorgolejar
sinistro, o silêncio novamente domina tudo.
Uau! Que fim! Que sinistro. Puxa! A cada capítulo o ambiente se apresenta mais estéril, inóspito. Gostei do capítulo, dos personagens. O linguajá deles é bem de malandro, bem cotidiano, e isso é bom. É bacana acompanhar o desenrolar da trama assim aos pouquinhos, aguça mais, ficamos cheios de expectativas. Abraços
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