quinta-feira, 17 de abril de 2014

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Novo capítulo desse projeto, onde mais um personagem, o penúltimo, é apresentado. Espero que gostem e novamente peço, comentem. Obrigado!


Falsa fé.

A música tema irrompe assim que as pesadas cortinas do palco se espaçam. Lentamente, deixam à mostra o rico e moderno púlpito, onde a banda religiosa, bem vestida, jovem e ensaiada ao máximo, retira acordes dos caríssimos instrumentos importados. A música é antiga, ainda do período pré-guerra, ela embala a gigantesca plateia com seu ritmo sertanejo americanizado, preparando-a para a longa gravação do programa religioso. A luz é diminuída e então o homem entra. Toda a congregação ergue-se e para saudar sua chegada e o ovaciona demoradamente. O homem sorri enquanto aguarda o fim da demonstração de apreço de seu rebanho. Ele é alto, de porte atlético, viril e sua postura emana força e liderança. Veste um terno, bem talhado, sob medida, cujo valor, poderia comprar um carro popular usado. Seus cabelos são cuidadosamente cortados para darem a ideia de austeridade. O rosto, vincado por algumas marcas de idade, ostenta um proeminente queixo quadrado que aumenta sua imagem de força e poder. Seu nariz adunco, semelhante a um bico de ave, enverga um luxuoso par de óculos de ouro e prata, de aros finos e elegantes, que confere um ar de sapiência e estudo aos olhos brilhantes de cor azul. Seu sorriso é perfeito, os dentes são simétricos, bem escovados e brilhantes, conferindo uma aura de bondade e paciência. É a imagem ideal da liderança.

Assim que a multidão volta a sentar-se, o homem vira em direção das câmeras e com sua voz, de um tom profundo e grave, dá início ao programa.
-Bem vindos amados. Eu sou o Apóstolo E. J. de Souza e esse é o Show Universal do Poder de Cristo.
Novamente a congregação ovaciona o apóstolo que sorri à espera do fim da vinheta de abertura, que vai sendo transmitida para todo o país e algumas partes do exterior. Enquanto aguarda, ele observa a multidão e se compraz com a lotação total do templo central de sua denominação. Ao fundo pode ver as pessoas se acotovelando por um lugar na entrada e isso só o deixa ainda mais satisfeito.
-Casa cheia. Hoje as ofertas serão gordas. – Pensa com seus botões.
A vinheta termina e assim que a pequena lâmpada vermelha, sob a câmera de número dois acende, o religioso dá inicio a seu sermão.
-Amados, mais uma vez tenho a alegria de estar aqui e os encontrar felizes. Felizes por estarem na casa do Senhor. Glória a Deus! Aleluia!
A multidão repete as palavras do homem, o aplaudindo de maneira automática.

O apóstolo passa então a caminhar pelo púlpito, seguido pelas câmeras e os olhares cheios de fé e admiração das pessoas. Por alguns segundos apenas sorri em silencio, em uma pausa dramática, preparando a congregação para um sermão cheio de lugares comuns, palavras de esperança e ameaça.
-Amados! O Senhor sabe de suas dores e aflições. Ele sabe e tem a solução para tudo. Tudo!
Mais uma pausa dramática é feita e o pastor observa as expressões de credulidade e acenos afirmativos do povo. Satisfeito com suas palavras dá continuidade ao sermão. Sua expressão e voz tornam-se mais sinistras e inquisidoras.
-Mas vocês tem feito o que é necessário, amados? Têm se entregado nas mãos do Senhor? Têm sido fiéis? Têm agido de forma condizente com a moral de um verdadeiro crente?
As pessoas ficam paralisadas, temendo responder de forma errônea as perguntas do palestrante.
-A resposta é não, amados. Não! Vocês não têm sido crentes verdadeiros! Não.
A expressão do homem novamente se suaviza e ele sorri para as pessoas perplexas.
-Não, vocês não têm sido certos ou agido da maneira certa. Por isso a maldição está sobre vocês! Aleluia!
O pastor olha para um rapaz que segura uma folha digital e o jovem levanta uma de suas mãos, mostrando três dedos, indicando que ainda restam trinta minutos antes do comercial. Com um sutil aceno de cabeça, o homem dá a entender que compreendeu a mensagem.
-Mas o Senhor é pleno de amor e perdão. E ele está pronto para perdoar suas falhas. Mas para isso, ele precisa de um sinal de fé. Um sinal verdadeiro de fé. E é por isso que eu estou aqui, para ajudar vocês a encontrar o perdão do Senhor. Aleluia!
Nova ovação percorre o templo moderno e vasto, meticulosamente planejado para causar sensações de paz, conforto e segurança. A imagem do apóstolo sorrindo é emoldurada nos modernos e gigantescos visores pendurados na nave central. A mesma imagem é vista em milhares de pequenos aparelhos domésticos em casas pobres ao redor do globo.

O homem ergue seu punho direito em um gesto teatral e fechando os olhos, continua sua atuação.
-Vocês sabem por que toda a África foi destruída?
As pessoas observam o pastor com os olhos cheios de um misto de reverência e medo servil.
-Por que eles eram malditos! Por que usavam da macumba! Da magia negra! Por que não seguiam o Senhor Jesus! E por isso o Senhor destruiu aquela terra maldita e assegurou que assim essa abominação toda fosse expurgada da terra! Aleluia!
O povo crédulo, composto por sua maioria por pessoas humildes de pouca escolaridade, ovaciona o homem por mais uma vez.
-E tenham certeza amados! Vocês e eu ainda estamos sob o poder da maldição, pois ela está no sangue! Nosso sangue! E para que o senhor tenha misericórdia, devemos provar nossa fé! E como vamos fazer isso? Ajudando na obra do Senhor!
As pessoas aplaudem o pastor com sorrisos cheios de esperança.
-Amados! Vivemos nos dias finais! Tudo está na Bíblia! As guerras, fome e morte dominam o mundo! E o tal cometa? Ele é o sinal da chegada do Inimigo! Glória a Deus! E quando ele chegar, todos os infiéis, os que não acreditam no Senhor! Serão queimados no fogo da danação! Aleluia!
A multidão fica em silêncio, o medo é óbvio em seus olhares.
-Mas amados, o Senhor nos deu uma oportunidade para provarmos a nossa fé e merecimento. Ele enviou uma palavra de esperança para mim e eu irei dividir essa palavra com vocês, os que querem ser crentes de verdade! Os que querem o maná do Senhor! Os que querem o perdão de Deus! Aleluia!
O povo, cheio de fé e esperança, aplaude o homem, que sorrindo, acena para a banda começar uma música de fundo. Uma marcha antiga, composta no estrangeiro, invade o ambiente.

No centro do púlpito, o apóstolo, em um novo gesto teatral aponta para a congregação.
-O senhor me disse em sonhos, que nós devemos construir uma nova arca. Uma arca para salvar o Seu povo! Mas para isso, amados, vocês tem que nos ajudar. Vocês tem que provar sua fé! E como vocês farão isso?
Novamente ele fica em silêncio por alguns minutos, encarando as pessoas, que cheias de medo e fervor, aguardam a resposta que supostamente salvará suas almas.
-Vocês provarão sua fé no Senhor, financiando esse projeto! Financiando o projeto do Senhor! O projeto Maná da Vida! Aleluia!
O rapaz que segura a folha digital gesticula, dizendo que é chegada a hora dos comerciais, o pastor dá uma piscadela como resposta.
-Amados! Agora nós daremos uma pausa na nossa pregação, pois a televisão exige que façamos três minutos de comerciais. Enquanto esperamos, a nossa irmã adoradora irá cantar um louvor para nós. Aleluia!
O homem se retira do centro do púlpito e uma jovem, de belos olhos verdes e com uma voz demasiada aguda, começa uma canção cheia de palavras de ordem e clichês. O pastor ao se aproximar do rapaz pergunta.
-Quem é essa garota Ezequiel?
O jovem, Ezequiel, sorri. Seu sorriso é cheio de significado.
-O nome dela é Allana Jessica. É a primeira vez que louva aqui no templo central. Quer conhecer ela pessoalmente?
O apóstolo sorri enquanto balança afirmativamente a cabeça.
-Quero sim. Boa bunda a dela. E os números?
O rapaz exibe a folha digital, nela várias estatísticas oscilam.
-Muito bons, batemos a novela e aquele seriado velho de humor. No exterior ainda estamos perdendo para as programações locais.
O apóstolo parece satisfeito.
-E as doações?
O rapaz toca a tela e novas estatísticas aparecem ao lado de várias imagens e vídeos de fieis ao redor do globo.
-Quebramos a meta de hoje e as campanhas de adesão nas mídias sócias pela internet são cada vez mais abrangentes. Um sucesso!
O homem dá algumas palmadas descontraídas nos ombros do jovem. A satisfação é muito óbvia em seu semblante.
-Ótimo Ezequiel. Continue o bom trabalho.
O pastor dá as costas ao rapaz, que fica sorrindo abobalhado com o cumprimento. Posiciona-se ao lado do palco, esperando que o intervalo termine. Seus olhos devassam as formas da cantora e ele pensa.
"Rabo gostoso esse dela, mas canta porra nenhuma essa piranha".
Assim que a canção termina, ele volta para o centro do púlpito e várias palavras de agradecimento são dirigidas a jovem enquanto ele perscruta a multidão. Ele sorri para si mesmo ao pensar no dinheiro e no sexo que conseguirá hoje.
Sorri da credulidade e ignorância da congregação.
Sorri de sua estupides e medo.
Sorri da falsa fé que vende.
Assim que a luz da câmera novamente acende, o pastor dá seguimento ao seu trabalho de vendedor da palavra divina.
Muito mais dinheiro precisa ser conquistado.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

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Novo capítulo desse projeto que apesar de pouco feedback, tem me ocupado a mente nos últimos tempos.
Dedico esse capítulo a amiga Maria Santino pelos comentários e dicas sempre tão gentis.
Espero que gostem e como via de regra peço, deixem um comentário. Obrigado!


Uma estátua no caminho.

O sol do meio dia com seus inclementes raios faz com que o velho asfalto se aqueça até que na distância, ele se pareça com água. O som monótono do vento curvando os matagais, fartos e altos, como vagas, é o único a quebrar o silencio sepulcral das ruínas da cidade. Um rapaz, sai ao sol para urinar sobre um velho bueiro, que mesmo antes da destruição da antiga capital do estado, já não cumpria sua missão de expelir as águas imundas da cidade até o mar, que tantos turistas um dia, pagaram fortunas para ver de janelas de hotéis que agora não passam de entulho e lembranças.

O rapaz é muito magro e alto, apesar de ser negra, sua pele é cinzenta, um efeito das drogas que consome diariamente. Seu cabelo, longo e enrolado como o de um rastafári, é tingido de loiro e confere a sua figura, uma aparência estranha devido à sua doentia magreza. Seus olhos são profundos e avermelhados, como se encravados na face, outro efeito de seu vício. A roupa que veste, uma camisa de um centenário time de futebol, tenta combinar-se com a bermuda de algum tecido sintético, cheio de padrões florais e um gasto par de chinelos brancos que deixam seus calcanhares tocarem o chão quente, são velhas, sujas e chamativas demais.
Enquanto urina, ele cantarola uma música que fala sobre violência e sexo. O rapaz parece perdido em pensamentos, mas na verdade, apenas está sob os efeitos da droga barata que o consome. Uma voz, o chama de dentro do buraco na parede do antigo prédio da prefeitura, que agora não passa de um lar para gatos e uns poucos mendigos sem juízo.
-Juba! Volta aqui seu filho da puta! Se algum dos “homi” te vê, nós tá morto! Volta aqui vacilão!

Lentamente, Juba caminha de volta para dentro do esconderijo e lá ele se depara com o outro rapaz.
-Qual é mané? Precisava mijar. Tu é muito cheio de caô Gregório.
Gregório, um rapaz tão alto quanto seu companheiro, mas muito mais saudável em aparência, está sentado, observando um grande pedaço de papel à sua frente. Sua cabeça é raspada, seus olhos são pequenos, de um estranho brilho e veste-se com um uniforme militar antigo, do tipo usado durante a guerra pelas forças compulsórias de defesa. Ele ameaça Juba.
-Se algum dos “homi” vier, eu te mato antes deles. Seu otário vacilão!
O mais magro, senta-se em um canto e enquanto acende seu cachimbo, tenta apaziguar Gregório.
-Que é isso parceiro? Relaxa que não vai dar ruim não. Tá afim?
O jovem estende o cachimbo na direção de seu companheiro.
-Quero essa porra não. Crakudo do caralho! Chega mais, que tu tem que tá ciente da situação.

Juba atende a ordem e coloca-se ao lado oposto do papel. Ele fica olhando para as linhas, letras e números enquanto espera que Gregório fale sobre o serviço.
-Tá vendo esse ponto aqui? – Ele aponta com o indicador uma marca vermelha desenhada à caneta. – Esse é o ponto que nós tá e nós tem que ir pra cá. – O dedo viaja sobre o papel e se fixa sobre outro ponto vermelho.
Por instantes, o drogado observa o papel parecendo não prestar atenção à explicação.
-Tá doidão já porra?
Gregório sacode o companheiro, que fica sorrindo abobalhado.
-Tô quase xará. Mas tô te ouvindo, continua. Quem te deu essa porra de mapa?
Sacudindo a cabeça de forma negativa, o rapaz começa a dobrar o mapa enquanto ergue-se.
-Tu é foda. Foi meu avô, ele foi cabo durante a guerra e me ensinou. Esse uniforme também foi dele.

Juba deitando-se no chão de costas e ainda fumando, indaga.
-Por que nós tem que entrar na cidade velha xará? Num era mais fácil os cara do movimento mandá essa porra de encomenda de carro ou outra merda?
Guardando o mapa em um bolso e sentando-se próximo à entrada do esconderijo, Gregório deixa escapar um grunhido de insatisfação.
-Por que assim é menas perigoso de os “homi” acharem as paradas mané. Só sendo muito otário pra passar no meio da cidade velha, ainda mais de noite. Eles nunca imaginaram que iam fazê isso.
Quase que completamente dopado, o rapaz deitado, continua com suas perguntas.
-Por quê? Por causa dos mutante e dos canibal?
Gregório sorri.
-Não tem mutante e nem canibal. É por causa dos mendigos malucos e das químicas.
Juba vira o rosto na direção de seu companheiro.
-Que química mané?
A expressão de Gregório se transforma em uma máscara de puro desprezo.
-Porra mané, tu não sabe de porra nenhuma mesmo. Foi durante a guerra. Quando os gringo invadiu a cidade, eles usaram a merda de um monte de bombas com químicas. Elas mataram geral e envenenaram tudo. Até hoje, maluco que vive andando por lá, se fode.
O drogado vira o corpo na direção de seu companheiro.
-Conta mais aí. O que aconteceu pra essas merdas terem rolado?
Gregório sorri de forma presunçosa.
-Tu sabe de nada mané. Meu avô me contou a parada toda. Os gringos invadiram pelo norte e vieram descendo o Brasil. Eles queriam a água e meteram o pé na porta pra pegá. Eles chegaram aqui no Rio, metendo o terror. Bomba pra caralho e maluco descendo nas praia e matando geral.
O governo subiu o morro e pegou tudo que é maluco que pudesse segurar um bérro e mandou pra ação. Morreu maluco pra caralho mané. O Brasil começou a vencer os malucos e aí eles mataram geral com bomba química. Matou geral, em todo lugar que jogaram as bombas e a química ficou até hoje lá. Por isso que quando a guerra acabou, o governo cercou tudo e proibiu de entrar. Podia matar só de respirar o ar. Agora, se tu não ficar lá por muito tempo, fica de boa e não morre.

O rapaz vira o rosto em direção às ruinas, que dominam a paisagem fora do esconderijo.
-Meu avô ficou sequelado com essas merdas que jogaram, ele as vez, fica se tremendo e babando. É sinistro mané. Tu sabe que vai ser foda hoje de noite, né?
Ao olhar novamente para o interior da pequena caverna, percebe que o outro rapaz está completamente dominado pelo sono escapista da droga e já não o ouve.
Gregório balança a cabeça de forma desaprovadora e deixa escapar um pensamento.
-Por isso que essa merda tá cada vez pior, vagabundo não quer porra nenhuma com a hora do Brasil.
Ele fecha os olhos e depois de algum tempo, dorme profundamente.

***

Quando Gregório acorda, a escuridão já caiu sobre o mundo e apenas as distantes estrelas e a Lua, jogam alguma luz sobre a cidade desolada. O jovem busca, com os olhos, Juba na escuridão e o encontra graças à pequena brasa, que arde no cachimbo do garoto.
-Apaga essa merda mané. Tá querendo que vagabundo ache nós?
Em passos lentos e pesados, o rapaz aproxima-se e com a voz enrolada, saindo do esconderijo, diz.
-Num fode mané. Bora meter o pé, que a parada é sinistra.

Gregório segue o companheiro, assim que afivela sua mochila nas costas. Ele corre até o corpo raquítico, que cambaleia no meio da antiga avenida e o arrasta para as sombras das ruínas.
-Tá querendo morrer mané? Porra. Só me segue vacilão, que eu sei o caminho. Já fiz essa merda antes.
Juba apenas balança a cabeça afirmativamente. Sua expressão é de puro torpor.
-Relaxa. Nós tá na atividade viado. Me garanto.

Após passarem sobre alguns quarteirões calcinados, a dupla chega até a quilométrica grade, que sela a área contaminada, presa a ela, cartazes de aviso desbotam sob a força dos elementos e do tempo. Eles espremem-se, por entre um buraco na estrutura e do outro lado, observam uma estranha construção. O drogado fica curioso.
-Que porra é essa mané?!
Uma mão tapa os lábios do rapaz e em sussurros, a resposta é dada.
-Fala baixo, filho da puta vacilão. Quer que alguém ache nós?
Juba afasta a mão com um safanão.
-Tá caralho. Mas diz pra mim. Que lugar é esse?
Gregório vira-se e continua a caminhada.
-Se chama Praça da Apoteose, antes da guerra, o desfile de carnaval era aqui. Por causa da química das bombas, eles mudaram lá pra Vila Isabel.

Os jovens continuam, e após passarem por escombros de uma grande estrutura, onde pichações em vermelho dizem, “Tanto balançou que caiu.”, chegam às ruinas da Central do Brasil e ao continuarem em frente, acabam por deparar-se com uma cratera que domina toda a rua. Ela parece perder-se de vista na escuridão. Por alguns minutos, ambos ficam em silêncio até que com a voz cheia de desapontamento, o jovem em trajes militares, o quebra com um xingamento.
-Fudeu. A porra do metrô ruiu. Vamo ter que dar a volta. Fudeu.
O rapaz magrelo, com seus olhos macilentos, vasculha a área e após um tempo, aponta para um gradil derretido, que dá acesso a uma floresta de árvores retorcidas e matagais de estranha coloração amarelada.
-Olha ali mané. Nós pode ir por ali não?
Gregório balança a cabeça negativamente.
-Pelo Campo da Morte? Tá maluco mané? Ai tem uma galera de maluco. Mata nós se pega.
Sorrindo, Juba começa a caminhar na direção do buraco nas grades, que já viram grande parte da história passar.
-Bora porra. Se nós ficar no sapatinho pega nada. Bora.
Mesmo contrário à ideia, o outro jovem segue o adicto, pela abertura.

A vegetação da floresta é vasta e de aparência doentia. Troncos de árvores centenárias recobertas de parasitas e marcas de fogo dominam o lugar. O mato é alto e espinhoso, ele agarra-se às roupas da dupla que com esforço, atravessa o lugar, tentando fazer pouco barulho. Após uma touceira de espinheiros mais frondosa, eles acabam por chegar a um descampado, onde ao longe, uma luz fantasmagórica se vê.
Curioso, Juba faz uma pergunta.
-Que porra é aquela mané?
A expressão do outro garoto é de puro medo.
-É a estatua da morte xará. Porra maluco, bora vazar que aqui é sinistro.
O rapaz parece ignorar a presença de seu parceiro e segue em direção da luz.
-Bora lá ver.
Gregório o segura pelo ombro, tentando o demover da ideia, mas ele o afasta.
-Sai fora mané. Se tu quiser, fica aqui e me espera. Eu vou ver essa porra.
O jovem segue o drogado.
-Para com isso mané. Essa porra é onde colocam os osso dos malucos que eles comem.
Juba para de caminhar no mesmo instante e em um movimento brusco, agarra seu companheiro pelo pescoço.
-Que papo errado é esse mané? Tu falou que não tinha esse papo de canibal.
Com um empurrão, Gregório o afasta.
-Eu menti mané. Tu não ia vir se eu dissesse que era verdade e eu preciso de tu pra trazer as parada na volta.
Juba o encara com os olhos cheios de ódio e então segue seu caminho até a estátua.
-E tu acha que eu sou cagão? Vai se fuder. Eu vou ver essa merda de perto.
O jovem fardado segue até a linha das árvores mais próximas e permanece ali, enquanto o outro continua em direção da figura de rocha.

Apesar do medo que sente, Juba continua sua caminhada ao estranho monumento, com passos largos, por vezes trôpegos por consequência das drogas, e decididos.
Ao chegar, depara-se com uma espantosa figura esculpida em rocha branca, de um homem coberto com um manto, ao seu redor, várias velas queimam e ossos de animais e seres humanos empilhados, exalam um odioso miasma de podridão. A face da obra foi vandalizada e transformada em um arremedo de caveira e na legenda em sua base, talhada de forma rústica a letra “f” sobrepõe-se a original. Com seu parco conhecimento, o jovem, após um profundo esforço, deixa escapar.
-O in... ferno. O inferno.
Concentrado, Juba não percebe que alguém, passa ao seu lado. Ele só toma nota que há algo ocorrendo, quando ouve a voz estridente que lhe ordena.
-Corre viado! Eles acharam nós!
O viciado leva um susto e só então entende a situação. Várias pessoas aproximam-se vindo das sombras das árvores e em sua frente, Gregório foge em desesperada carreira. Ele segue o exemplo e após poucos segundos, o alcança.
A dupla corre às cegas por um longo percurso e assim que o barulho da turba perseguidora desaparece, o mais magro dos dois decide parar e recuperar o folego.
-Para mané, preciso descansar ou caio duro.
Gregório parece não ouvir e continua a correr. Só quando seu pulmão começa a arder, que o rapaz para e ao olhar ao seu redor, não encontra o companheiro.
Usando de suas últimas forças, ele corre pelo caminho pelo qual veio e alguns metros depois, os gritos rompem o silêncio.
Juba urra implorando por ajuda, sua voz é cheia de desespero e horror. O rapaz grita como um porco sendo abatido.
Gregório pensa em continuar e ir ajudar o pobre rapaz, mas seu medo e instinto de preservação falam mais alto e ele segue seu caminho rumo ao ponto de entrega.
-Eu te avisei mané. Que se foda.

Os gritos ecoam pelas ruínas do centro do Rio por alguns minutos e então após um gorgolejar sinistro, o silêncio novamente domina tudo.

terça-feira, 1 de abril de 2014

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Segundo capítulo desse projeto, onde o universo da trama é apresentado um pouco mais. Espero que gostem e como sempre, peço que comentem. Obrigado!


Dois engenheiros.

A tela do computador mostra gráficos da trajetória do cometa para o engenheiro sentado à sua frente. Ele avalia, relaciona e compara os dados, para então, os estruturar em uma complexa planilha estatística. O grande relógio cromado que ocupa a parede da baia de trabalho do homem, diz que ainda é muito cedo, apenas nove da manhã, mas ele já está farto desse pequeno serviço maçante e boceja a todo instante.

O som que ocupa todo o ambiente é uma cacofonia de vozes entediadas, quase mecânicas de tão impessoais, transmissões de rádio e os zumbidos das centenas de computadores. O barulho só faz o desanimo amentar no homem. O engenheiro divide sua atenção entre seu labor e indagações sobre todos os anos de estudo e dedicação, que acabaram por ser recompensados com um emprego, que apesar de estável e bem remunerado, é em quase nada gratificante.

Suas divagações chegam a um fim, assim que um homem se aproxima sorrindo. Ele é baixo, gordo, careca e ostenta um grande bigode. Seu sorriso, apesar de franco, lhe faz parecer estúpido.
-Bom dia Gutierrez. Que tal uma pausa para um café?
O engenheiro sentado à frente do computador, como se desperto de um longo sonho, vira-se lentamente em direção da voz.
-Bom dia Honsom. Por que não?

O homem levanta-se e acompanhado de seu atarracado colega, caminha em direção da máquina de café.
Durante o pequeno trajeto, Honsom o bombardeia com amenidades vistas e lidas mais cedo. Gutierrez apenas olha de soslaio para seu falante colega, vez por outra, ele concorda sobre algo, com monótonos acenos positivos com a cabeça. A verborragia estúpida e vazia do colega faz com que ele passe a considerar as analises estatísticas bem mais cativantes.

Ao chegarem à pequena sala, onde várias máquinas de vendas automáticas e um antigo aparelho de televisão estão dispostos, os homens, um após o outro, tocam os painéis de identificação digital e recebem, cada qual, seu café.
O mais baixo da dupla, prova a bebida e uma careta de desgosto surge em sua face.
-Essa droga de café está cada vez pior.
Gutierrez discorda com a cabeça, enquanto dá alguns goles na bebida.
-Eu gosto do café daqui, forte e muito doce.
Honsom sorri enquanto balança a cabeça de forma desaprovadora.
-Você ainda vai adoecer de tanto comer doces. Viu a nova entrevista do Craig? Eu achei interessante.

O engenheiro mais alto deixa escapar um suspiro desaprovador enquanto continua bebendo.
-Vi aquela merda sim. Aquilo não pode ser considerado como uma entrevista são apenas nove parágrafos. Na minha época, entrevistas de verdade, tinham várias páginas.
O careca sorri enquanto bebe.
-Você parece um velho rabugento falando assim. Os leitores de hoje em dia, não tem paciência, vontade ou tempo para textos como os de antes da guerra. Essa é uma geração mais veloz e cheia de afazeres.

A expressão de Gutierrez se enche de desdém.
-Cheio de afazeres é o meu pau. São um bando de retardados que só querem as coisas mastigadas e fáceis. Uma corja de ignorantes. Minha sobrinha, por exemplo, dei para a garota no Natal, um livro como presente. Semanas depois, perguntei a ela sobre o que achou do livro, se havia gostado. E sabe o que ela disse?
Jogando o copo descartável no lixo, Honsom balança a cabeça negativamente em resposta à pergunta.
-A vaca da garota disse que odiou! Que era muito longo e com uma linguagem rebuscada demais! E sabe qual era o livro?
Enquanto pega um pacote de biscoito de uma das máquinas, o outro engenheiro, novamente responde de forma negativa.
-Torres de Num do Bill Smith! Porra! O livro tem umas cento e tantas páginas e a linguagem é muito acessível. Eu li esse livro quando eu era um garoto da idade dela. Essa atual geração é uma merda.
Mastigando vários biscoitos ao mesmo tempo, o outro homem sorri, deixando que farelos caiam de sua boca.
-Você realmente parece um velho ranzinza. Viu a simulação do Projeto Esperare?
Muito irritado, Gutierrez busca outro copo de café.
-Não, me atrasei hoje. Você viu?

Amassando o pacote vazio entre as mãos, o careca, deixa escapar um riso de satisfação.
-Sim eu vi. Fantástico! Eles capturarão o máximo possível de pedaços de gelo desprendidos do cometa. Em seguida, os rebocarão até a órbita da Terra e o deixarão cair na atmosfera em pequenos pedaços. Será um sucesso!
O otimismo do homem irrita ainda mais Gutierrez.
-E caso existam patógenos desconhecidos na porra do gelo? Eles acham que a fricção e todo o calor gerado, podem eliminar qualquer risco? Meu pau que pode.
Honsom parece se divertir com o humor do colega.
-Lógico que eles farão estudos sobre esse tipo de coisa. Somos a NASA.

Gutierrez fica completamente irritado.
-Espero que façam um serviço porco e que deixem passar alguma coisa que acabe com esse bando de inúteis que só servem para ocupar espaço. Uma merda pior que o Neo Ebola.
Cruzando os braços, o outro engenheiro, parece horrorizado com a afirmação.
-Meu Deus cara. Nem brinque com isso. Todo o continente africano ainda é zona de risco biológico. Segundo os novos relatórios da ONU, não existem populações humanas em todo o continente. Você não sente pena dos africanos? Foi uma catástrofe.
Dando de ombros, o homem mais alto, bebe um pouco mais do seu café.
-Que se fodam os africanos. Quem mandou entrarem em guerra por causa de religião? Quem mandou criarem a porra do vírus? Quem mandou serem idiotas e usarem aquela merda neles mesmos?
Seu colega coloca as mãos na cintura e sua voz é cheia de reprovação.
-Você é impossível cara! Essa sua amargura ainda vai te causar um câncer ou coisa pior!
Honsom vira-se e em passos decididos, vai embora.
Gutierrez sorri de satisfação e ao tomar o restante do café em seu copo, o joga no lixo, em seguida puxa do bolso, um maço de cigarros e acende um.
Ele mostra o dedo médio para o pequeno aviso que proíbe o fumo no recinto e então liga a televisão.

Na tela, imagens de protestos ao redor do globo. Os protestantes exigem um relaxamento nas leis de racionamento de consumo de água. O engenheiro troca de canal e um comercial de um novo reality show com atrizes pornôs aparece no visor.
Após uma longa tragada, o homem deixa escapar um pensamento.
-Salvar essa merda? Para que?

Ele joga o cigarro no chão e o pisando, apaga a pequena guimba. Em passos lentos, Gutierrez retorna para seu maçante serviço.