quinta-feira, 17 de abril de 2014

Posted by T. T. Albuquerque | File under : , , , ,
Novo capítulo desse projeto, onde mais um personagem, o penúltimo, é apresentado. Espero que gostem e novamente peço, comentem. Obrigado!


Falsa fé.

A música tema irrompe assim que as pesadas cortinas do palco se espaçam. Lentamente, deixam à mostra o rico e moderno púlpito, onde a banda religiosa, bem vestida, jovem e ensaiada ao máximo, retira acordes dos caríssimos instrumentos importados. A música é antiga, ainda do período pré-guerra, ela embala a gigantesca plateia com seu ritmo sertanejo americanizado, preparando-a para a longa gravação do programa religioso. A luz é diminuída e então o homem entra. Toda a congregação ergue-se e para saudar sua chegada e o ovaciona demoradamente. O homem sorri enquanto aguarda o fim da demonstração de apreço de seu rebanho. Ele é alto, de porte atlético, viril e sua postura emana força e liderança. Veste um terno, bem talhado, sob medida, cujo valor, poderia comprar um carro popular usado. Seus cabelos são cuidadosamente cortados para darem a ideia de austeridade. O rosto, vincado por algumas marcas de idade, ostenta um proeminente queixo quadrado que aumenta sua imagem de força e poder. Seu nariz adunco, semelhante a um bico de ave, enverga um luxuoso par de óculos de ouro e prata, de aros finos e elegantes, que confere um ar de sapiência e estudo aos olhos brilhantes de cor azul. Seu sorriso é perfeito, os dentes são simétricos, bem escovados e brilhantes, conferindo uma aura de bondade e paciência. É a imagem ideal da liderança.

Assim que a multidão volta a sentar-se, o homem vira em direção das câmeras e com sua voz, de um tom profundo e grave, dá início ao programa.
-Bem vindos amados. Eu sou o Apóstolo E. J. de Souza e esse é o Show Universal do Poder de Cristo.
Novamente a congregação ovaciona o apóstolo que sorri à espera do fim da vinheta de abertura, que vai sendo transmitida para todo o país e algumas partes do exterior. Enquanto aguarda, ele observa a multidão e se compraz com a lotação total do templo central de sua denominação. Ao fundo pode ver as pessoas se acotovelando por um lugar na entrada e isso só o deixa ainda mais satisfeito.
-Casa cheia. Hoje as ofertas serão gordas. – Pensa com seus botões.
A vinheta termina e assim que a pequena lâmpada vermelha, sob a câmera de número dois acende, o religioso dá inicio a seu sermão.
-Amados, mais uma vez tenho a alegria de estar aqui e os encontrar felizes. Felizes por estarem na casa do Senhor. Glória a Deus! Aleluia!
A multidão repete as palavras do homem, o aplaudindo de maneira automática.

O apóstolo passa então a caminhar pelo púlpito, seguido pelas câmeras e os olhares cheios de fé e admiração das pessoas. Por alguns segundos apenas sorri em silencio, em uma pausa dramática, preparando a congregação para um sermão cheio de lugares comuns, palavras de esperança e ameaça.
-Amados! O Senhor sabe de suas dores e aflições. Ele sabe e tem a solução para tudo. Tudo!
Mais uma pausa dramática é feita e o pastor observa as expressões de credulidade e acenos afirmativos do povo. Satisfeito com suas palavras dá continuidade ao sermão. Sua expressão e voz tornam-se mais sinistras e inquisidoras.
-Mas vocês tem feito o que é necessário, amados? Têm se entregado nas mãos do Senhor? Têm sido fiéis? Têm agido de forma condizente com a moral de um verdadeiro crente?
As pessoas ficam paralisadas, temendo responder de forma errônea as perguntas do palestrante.
-A resposta é não, amados. Não! Vocês não têm sido crentes verdadeiros! Não.
A expressão do homem novamente se suaviza e ele sorri para as pessoas perplexas.
-Não, vocês não têm sido certos ou agido da maneira certa. Por isso a maldição está sobre vocês! Aleluia!
O pastor olha para um rapaz que segura uma folha digital e o jovem levanta uma de suas mãos, mostrando três dedos, indicando que ainda restam trinta minutos antes do comercial. Com um sutil aceno de cabeça, o homem dá a entender que compreendeu a mensagem.
-Mas o Senhor é pleno de amor e perdão. E ele está pronto para perdoar suas falhas. Mas para isso, ele precisa de um sinal de fé. Um sinal verdadeiro de fé. E é por isso que eu estou aqui, para ajudar vocês a encontrar o perdão do Senhor. Aleluia!
Nova ovação percorre o templo moderno e vasto, meticulosamente planejado para causar sensações de paz, conforto e segurança. A imagem do apóstolo sorrindo é emoldurada nos modernos e gigantescos visores pendurados na nave central. A mesma imagem é vista em milhares de pequenos aparelhos domésticos em casas pobres ao redor do globo.

O homem ergue seu punho direito em um gesto teatral e fechando os olhos, continua sua atuação.
-Vocês sabem por que toda a África foi destruída?
As pessoas observam o pastor com os olhos cheios de um misto de reverência e medo servil.
-Por que eles eram malditos! Por que usavam da macumba! Da magia negra! Por que não seguiam o Senhor Jesus! E por isso o Senhor destruiu aquela terra maldita e assegurou que assim essa abominação toda fosse expurgada da terra! Aleluia!
O povo crédulo, composto por sua maioria por pessoas humildes de pouca escolaridade, ovaciona o homem por mais uma vez.
-E tenham certeza amados! Vocês e eu ainda estamos sob o poder da maldição, pois ela está no sangue! Nosso sangue! E para que o senhor tenha misericórdia, devemos provar nossa fé! E como vamos fazer isso? Ajudando na obra do Senhor!
As pessoas aplaudem o pastor com sorrisos cheios de esperança.
-Amados! Vivemos nos dias finais! Tudo está na Bíblia! As guerras, fome e morte dominam o mundo! E o tal cometa? Ele é o sinal da chegada do Inimigo! Glória a Deus! E quando ele chegar, todos os infiéis, os que não acreditam no Senhor! Serão queimados no fogo da danação! Aleluia!
A multidão fica em silêncio, o medo é óbvio em seus olhares.
-Mas amados, o Senhor nos deu uma oportunidade para provarmos a nossa fé e merecimento. Ele enviou uma palavra de esperança para mim e eu irei dividir essa palavra com vocês, os que querem ser crentes de verdade! Os que querem o maná do Senhor! Os que querem o perdão de Deus! Aleluia!
O povo, cheio de fé e esperança, aplaude o homem, que sorrindo, acena para a banda começar uma música de fundo. Uma marcha antiga, composta no estrangeiro, invade o ambiente.

No centro do púlpito, o apóstolo, em um novo gesto teatral aponta para a congregação.
-O senhor me disse em sonhos, que nós devemos construir uma nova arca. Uma arca para salvar o Seu povo! Mas para isso, amados, vocês tem que nos ajudar. Vocês tem que provar sua fé! E como vocês farão isso?
Novamente ele fica em silêncio por alguns minutos, encarando as pessoas, que cheias de medo e fervor, aguardam a resposta que supostamente salvará suas almas.
-Vocês provarão sua fé no Senhor, financiando esse projeto! Financiando o projeto do Senhor! O projeto Maná da Vida! Aleluia!
O rapaz que segura a folha digital gesticula, dizendo que é chegada a hora dos comerciais, o pastor dá uma piscadela como resposta.
-Amados! Agora nós daremos uma pausa na nossa pregação, pois a televisão exige que façamos três minutos de comerciais. Enquanto esperamos, a nossa irmã adoradora irá cantar um louvor para nós. Aleluia!
O homem se retira do centro do púlpito e uma jovem, de belos olhos verdes e com uma voz demasiada aguda, começa uma canção cheia de palavras de ordem e clichês. O pastor ao se aproximar do rapaz pergunta.
-Quem é essa garota Ezequiel?
O jovem, Ezequiel, sorri. Seu sorriso é cheio de significado.
-O nome dela é Allana Jessica. É a primeira vez que louva aqui no templo central. Quer conhecer ela pessoalmente?
O apóstolo sorri enquanto balança afirmativamente a cabeça.
-Quero sim. Boa bunda a dela. E os números?
O rapaz exibe a folha digital, nela várias estatísticas oscilam.
-Muito bons, batemos a novela e aquele seriado velho de humor. No exterior ainda estamos perdendo para as programações locais.
O apóstolo parece satisfeito.
-E as doações?
O rapaz toca a tela e novas estatísticas aparecem ao lado de várias imagens e vídeos de fieis ao redor do globo.
-Quebramos a meta de hoje e as campanhas de adesão nas mídias sócias pela internet são cada vez mais abrangentes. Um sucesso!
O homem dá algumas palmadas descontraídas nos ombros do jovem. A satisfação é muito óbvia em seu semblante.
-Ótimo Ezequiel. Continue o bom trabalho.
O pastor dá as costas ao rapaz, que fica sorrindo abobalhado com o cumprimento. Posiciona-se ao lado do palco, esperando que o intervalo termine. Seus olhos devassam as formas da cantora e ele pensa.
"Rabo gostoso esse dela, mas canta porra nenhuma essa piranha".
Assim que a canção termina, ele volta para o centro do púlpito e várias palavras de agradecimento são dirigidas a jovem enquanto ele perscruta a multidão. Ele sorri para si mesmo ao pensar no dinheiro e no sexo que conseguirá hoje.
Sorri da credulidade e ignorância da congregação.
Sorri de sua estupides e medo.
Sorri da falsa fé que vende.
Assim que a luz da câmera novamente acende, o pastor dá seguimento ao seu trabalho de vendedor da palavra divina.
Muito mais dinheiro precisa ser conquistado.

Um comentário:

  1. Cara! Eu adorei esse capítulo. Uma critica muito boa... Existem muitas pessoas assim neste nosso mundo e não precisamos correr no tempo para encontrá-las, pois elas estão em nosso meio mesmo. Usando o cristianismo para satisfazer as suas necessidades (ou melhor, vontades). A coerção, o medo é uma banalidade, contraditório... Como seria belo e mais justo se fizéssemos ou deixássemos de fazer algo baseado no respeito, em não prejudicar o próximo. Mas... Nossa sociedade enferma, padece mais e mais. Ótimo capítulo. No aguardo de mais. Abraços.

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