quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Posted by T. T. Albuquerque | File under : , , ,
Após um hiato, retorno com um novo capítulo desse projeto onde um ente do folclore nacional é responsável pela riqueza de um a família. Espero que gostem e se possível comentem. Obrigado.



O famaliá de meu avô.

Santarém, Pará, 16 de abril de 2007.

Nessa semana, publicaremos a história do senhor José Raimundo Cravo Neto, natural do estado do Maranhão e que atualmente vive em Sergipe. Ele nos enviou um relato escrito por seu finado avô, acerca de um suposto pacto demoníaco perpetrado pelo mesmo, que legou como herança à família, um ente fantástico do folclore nacional. Como de costume, apresentaremos o texto enviado pelo leitor e logo em seguida, um pequeno adendo explicativo, relativo ao ser descrito.

Aracajú, Sergipe, 28 de março de 2007.

Olá amigo C. C. de Carvalho, meu nome é José Raimundo Cravo Neto, tenho 65 anos, sou professor e vivo atualmente em Aracajú. Tenho seguido sua coluna pela internet e apesar de muitas vezes a achar cômica e pueril, confesso que a mesma me atrai demasiadamente, pois desde menino que esse tipo de narrativa, de cunho fantástico, faz parte de minha vida familiar.

Segundo meu finado avô, figura muito querida por todos e que viveu até os noventa e seis anos, a história da família Cravo é cheia de atos de temeridade ao tratar com o dito “oculto” e inclusive a condição economicamente tranquila que gozamos se deve a isso.

Quando garoto, ele costumava me contar “causos” ocorridos em sua juventude e os mesmos eram sempre recheados de catimbós e assombrações. Eu ouvia extasiado, cada cena descrita e me encolhia todo de medo sobre as cobertas ao relembrar das criaturas malignas que viviam no imaginário interiorano de meu querido avô. Com o tempo, cresci e as conversas minguaram, assim como os relatos fantásticos, pois meus interesses deixaram de lado o irreal e me tornaram um jovem pragmático, fazendo com que me afastasse.

Agora idoso, percebo o quanto fui um tolo. Penso que a idade é uma acusadora cruel, já que não nos poupa de nenhum pecadilho perdido na memória.

Mas creio que estou sendo vago e saudosista, deixando escapar o motivo real dessa nossa conversa.

Recentemente, ao visitar a antiga fazenda da família, localizada nos arredores da cidade de Codó no Maranhão, acabei por topar com uma caixa escondida entre cacarecos jogados em um depósito, onde estavam guardadas algumas páginas de uma espécie de “testamento” e um objeto dos mais curiosos: um supostamente autêntico “famaliá”.

Apesar de não acreditar mais em mitos, creio que o relato contido nas páginas amareladas pelo tempo, seja mui interessante para os leitores de sua coluna semanal e por isso decidi o enviar.

            Espero que o mesmo seja publicado e dessa feita, a memória de meu avô viva além de mim.

            Atenciosamente,
                                   José Raimundo Cravo Neto.

O relato encontrado na fazenda:

Codó, 11 de dezembro de 1966.

            Após tantos anos, finalmente vejo uma forma de escapar da sina que me auto impus. Finalmente um fiapo de esperança surgiu para que eu me agarrasse e assim não legue a criatura para meus meninos. Que ela permaneça presa sem nunca mais ver a luz do Criador.

            Que meus pecados sejam cobrados somente de mim.

            Deixo esse documento como um fio condutor, para se algum de meus descendentes cometerem o erro de abrir a caixa, com sua ajuda, tentarem remediar o mal que acabará por cair sobre suas vidas como uma mortalha.

            Essa criatura surgiu em minha vida quando eu ainda era um rapazote da roça, iletrado, marginalizado e sem perspectivas para o futuro. Devido à vida dura, mesmo miserável que levava, acabei por enveredar na seara do crime. Roubei e matei a troco de ninharias, fui durante um longo tempo, um dos cabras mais temidos da região, mas como sempre ocorre, acabei preso e levado para uma colônia penal. Foi lá que conheci Osório, catimbozeiro, que segundo ele mesmo, havia sido preso por ter lançado um feitiço em uma família de políticos, causando a morte de várias pessoas. Era um homem estranho, pois nunca saia da cela e que jamais vi comendo ou bebendo algo.

Durante os anos em que fiquei preso, acabei por travar uma profunda amizade pelo idoso. Quando perto de completar meu tempo de pena, Osório, para agradecer por minha amizade, me propôs ensinar um catimbó para enriquecer e assim angariar poder e respeito, mas para isso, eu teria que pagar um alto tributo: teria que abdicar de minha alma imortal.

            Impetuoso e tolo como eu era, não fiz caso do tal “tributo” e apenas instei como deveria proceder. Foi o início de minha futura fortuna e maldição.

            Assim que fui liberto, segui para a casa de minha família e como determinado pelos ditames ensinados por Osório, esperei até a chegada da quaresma, quando coloquei em prática o catimbó aprendido.

            Assim que a noite desceu, fui até uma encruzilhada em uma estradinha de chão e por três vezes chamei o nome secreto do Diabo: Luzbel.

             Tão logo o som de minha voz se perdeu entre a densa mata que margeava a encruzilhada, uma silhueta surgiu das sombras e em passos lerdos foi até o centro da intercessão para depositar algo no solo frio e desaparecer. Apesar de ser um cabra valente, tremi como um covarde durante um bom tempo. Quando a tremedeira passou, me dirigi até o ponto onde a figura sinistra havia largado algo no chão e lá, encontrei um diminuto ovo. Um ovo de casca preta como piche e de um peso desproporcional para seu tamanho.

            Como exigia a formula mágica do velho catimbozeiro, coloquei o ovo debaixo do sovaco esquerdo e desembestei para casa. Durante todo o caminho, ouvi o que pareciam ser vozes distantes, rindo e amaldiçoando.

            Tão logo pisei em casa, tranquei-me no quarto e lá permaneci escondido, evitando sair, mesmo para me alimentar. Meus pais de início pensaram que eu estivesse novamente em maus lençóis com a lei e por isso, não fizeram caso do meu comportamento arredio. Foram, como sempre, muito amáveis. No entanto, com o passar dos dias, minha condição física se deteriorou demasiadamente, emagreci mais de dez quilos em pouco mais de duas semanas e tal fato trouxe alarme.

            Acabei sendo forçado a sair de casa para tomar um pouco de sol e respirar ar fresco, mas ao pisar no terreiro, novamente as estranhas vozes se fizeram ouvir e na distância, pude ver silhuetas como a que se apresentou no meio da estrada. Esmagado pelo medo, voltei a me trancar em meu quarto e lá fiquei por mais dez dias, até que finalmente o ovo maldito eclodiu.

            Na quadragésima noite após receber o ovo, acordei sentindo uma dor lancinante na mão esquerda e quando a visão se focou, fiquei estarrecido com o que vi. Presa a meu dedo indicador, uma pequena criatura estava peluda, com galhas, patas semelhantes às de uma ave e mãos como de um mico. Ela mordia e sugava com sofreguidão, o sangue que escorria de meu corpo.

            Levei alguns momentos até tomar controle da situação, mas quando meu espanto se esvaiu, tratei de arrancá-la de minha mão esquerda e a levar até a garrafa que havia preparado para lhe servir de prisão. Usei um garrafão de vinho barato, desses de vidro verde fosco. Sobre o vidro, usando uma ferramenta própria para o fim, desenhei símbolos que havia aprendido com Osório, segundo ele, eram chaves mágicas cujo poder forçavam o famaliá a ser servil durante seu tempo de cativeiro. Foi trabalhoso forçar a criaturinha, que devia medir na época um pouco mais de dez centímetros, gargalo adentro. Ela guinchava e mordia com raiva incontida, mas no fim, coloquei a rolha e cramulhãozinho ficou a arranhar inutilmente o vidro.

            Após essa noite, as coisas começaram a tomar um rumo venturoso. Assim como perdi peso de forma espantosa, retomei meu vigor. E o medo que sentia morreu por completo ao me aventurar fora de casa e não ver ou ouvir mais nada de sobrenatural.

            Com o passar das semanas, me aventurei na vila mais próxima e tão logo cheguei ao lugar, encontrei dinheiro na rua. Uma quantia pequena, mas graças a ela pude jogar no bicho e ganhar uma bolada. Com o dinheiro ganho, comprei algumas cabras para presentear meu pai e para nossa alegria, uma doença severa caiu sobre todas as vacas e demais animais leiteiros da região, matando rapidamente todos os rebanhos, menos o nosso e dessa forma, ganhamos muito dinheiro.

            Os meses se passaram e a cada dia eu enriquecia mais. De forma milagrosa, as condições para que as posses de minha família aumentassem, se multiplicavam. Tudo devido ao poder do famaliá preso no garrafão de vinho.

            Assim que a condição financeira permitiu, meu pai contratou um professor para me educar e após minha alfabetização, ingressei em um ótimo colégio e segui vida acadêmica até formar-me como bacharel em direito.

            Agora, já idoso, dono de uma fortuna e pai de dois meninos, vejo que todo o dinheiro e poder que juntei são malditos. Recentemente o diabrete passou a se comunicar comigo. Com sua voz aguda, como a de uma criança histérica, ri de alegria, pois o fim dos meus dias se aproxima e meu ocaso será o de toda a minha descendência.

            Temendo as ameaças do famaliá, contratei os serviços de estudiosos sobre o oculto e acabei por conseguir descobrir uma forma de deter o mal que espreita minha casa, um mal que eu mesmo conclamei.

            Usando dos conhecimentos de um rabino, mandei construir uma caixa especial, cujo poder anula a força da criatura na garrafa, detendo sua sanha.

            Essa é toda a verdade, tudo o que ocorreu até a data de hoje. Agora, ciente da situação, siga as instruções que lhe deixo.

            No dia que a caixa for aberta, você, meu descendente, deve agir da seguinte forma: leve o famaliá... (Esse trecho do documento se deteriorou graças à ação de fungos, tornando impossível a leitura) ...só assim terás chance de escapar do mal.

            Que Deus tenha misericórdia de minha alma e proteja minha família.

                                                                                                          José Raimundo Cravo.

O famaliá:

O famaliá, cramulhão, diabrete da garrafa, entre outra infinidade de nomes, é um ente do folclore nacional cuja presença é marcante na literatura e ideário popular. Oriundo da mítica da região nordeste e norte do Brasil foi imortalizado em vários contos, romances, lendas e mesmo em folhetins televisivos.

Segundo a tradição dita, nasce quando um indivíduo faz um pacto com o Diabo em troca de riqueza e poder. Seria o equivalente nacional dos familiares descritos na tradição cristã europeia. Segundo o Ars Goétia, muitos dos espíritos que podem ser supostamente conjurados, fornecem familiares, seres que possuiriam a função de auxiliar o feiticeiro em uma vasta gama de labores.

No folclore nacional, para se conseguir um famaliá, o interessado, após seu encontro com o Diabo em pessoa, deve procurar um ovo especial, que pode ser fornecido tanto pelo ser demoníaco, quanto por um animal como uma galinha, lagartixa, cobra ou galo. Quanto mais insólito ou perigoso o provedor do ovo mágico, mais poderoso o diabrete. A cor do ovo também determinaria o poder do cramulhãozinho, sendo que quanto mais escura sua casca, mais eficiente a criatura.

Após o passo inicial de se conseguir o ovo, tarefa que deve ser feita durante a Quaresma, o contratante do pacto deve levar ovo sob sua axila esquerda, em uma encruzilhada durante a meia noite e ali permanecer durante toda a madrugada. Assim que a manhã despontar no horizonte, deverá ir para casa e permanecer trancado nela durante quarenta dias até que o ovo ecloda e o diabrete surja.

Logo após o nascimento da criatura, seu dono deve a prender em uma garrafa previamente preparada para tal fim, visando o total controle do famaliá e o uso de seus poderes mágicos. O diabrete permanece dentro do recipiente/prisão durante toda a vida de seu mestre e após a morte do mesmo, escapa e carrega sua alma para o inferno.

Segundo a Goétia, um familiar deve ser alimentado com uma gota de sangue a cada quinze dias. O sangue deve ser do seu amo e caso não seja alimentado, lentamente definhará até desaparecer.

Foto: A caixa escondida.

Na foto, vemos uma caixa de madeira onde foram pirogravados alguns símbolos que parecem ter significado religioso/mágico e o aviso descrito no relato do senhor Cravo. A caixa parece ser sólida e possui reforços em metal que lhe legam a aparência de um cofre rústico.

Foto: O famaliá ressecado dentro da garrafa.

            Na imagem se observa uma pequena figura, cujo aspecto vai de encontro com o narrado nos documentos encontrados pelo senhor Cravo Neto, a mesma está ressecada como uma múmia e deitada na posição fetal. Um brilho sinistro emana do que seriam os orifícios oculares. Um efeito do flash da câmera? Sem sombra de dúvida, um artesanato muito bem trabalhado.

Agradecemos o senhor Cravo Neto pelo sua contribuição e como de costume, colocamos a cópia do documento original enviado para nossa redação, à disposição dos leitores que desejarem avaliar a veracidade do mesmo. Basta nos enviar o pedido via internet.

C. C. de Carvalho – Jornalista